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Crítica | Uma Noite em Miami

por Iann Jeliel
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Uma Noite em Miami

Adaptação da peça homônima, Uma Noite em Miami trata-se de um exercício imaginativo histórico, em que se sabe que houve tal acontecimento narrado na realidade, mas não se tem conhecimento de como exatamente ele aconteceu. No caso, a premissa imagina o que foi conversado numa noite em que quatro dos maiores símbolos do movimento negro norte-americano – Cassius Clay/Muhammad Ali (Eli Goree), Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), Sam Cooke (Leslie Odom Jr.) e Jim Brown (Aldis Hodge) – se reuniram em Miami para discutir seus futuros e questões relacionadas àquilo que defendiam.

O que mais chama a atenção inicialmente no primeiro longa-metragem dirigido pela atriz Regina King é a ruptura de uma contextualização estratégica e o encaminhamento mais direto à reunião das figuras. Os 10 minutos iniciais até têm ceninhas introdutórias de cada personagem, mas já são direcionadas a uma dramática mais intimista que será trabalhada ao longo do filme, em vez de fazer firulas explicativas sobre quem são eles. A cineasta pula essa etapa por acreditar que a força conteudista do texto já automaticamente trará a associação das figuras ao público, caso porventura haja alguém que não conheça qualquer um dos quatro. Para quem os conhece, o exercício de proximidade abre rapidamente camadas de possíveis conflitos no texto, alavancadas pelo atrito das distintas personalidades.

Estruturalmente, há uma variação interessante na dramaturgia que os une no princípio de celebração do primeiro mundial de Cassius-Ali, separa-os pelas divergências de forma de discurso e busca os reunir no entendimento de que existe um bem maior que os interliga. É interessante pensar nesse efeito diante de um acontecimento perto do fim da trajetória de vida de Malcolm X, que começava a mudar seus extremismos poucos dias antes do próprio assassinato. Poucos dias em que essa noite estava no meio, noite que ele proporcionou, porque enxergava naqueles seus amigos um potencial além do sucesso e talento que tinham, e que em sua visão só precisavam de um empurrão para transformar a natural iconicidade de ser o melhor em suas valência para um discurso mais direto em defesa dos movimentos civis da negritude, do jeito que ele fazia. Em contrapartida, o trio daria um empurrão de volta para fazer Malcolm perceber que sua metodologia sozinha também não trazia o efeito desejado, da mesma forma que ele fazia crítica a eles por serem “menos posicionados”.

Portanto, o filme posiciona aquela dialogação entre os personagens como fundamental no processo que os tornariam lendas, por justamente tornar aquela noite um divisor de águas e equilíbrio à jornada de cada um. E isso é deveras muito belo. Em termos conteudistas, a adaptação traz uma reimaginação histórica para refletir numa valorização histórica de um legado, ou melhor, quatro legados, sem precisar mostrar cenas explícitas de injúria racial gratuita para provar esse ponto. O problema é que na forma essa adaptação mais parece uma transcrição do que de fato uma adaptação. Se King sabe muito bem dar aberturas para o texto fluir com mais força, ela pouco faz para potencializar esse texto no momento de brilho em termos cinematográficos.

Uso como exemplo contrário o filme Um Limite Entre Nós, onde Denzel Washington buscou seguir à risca uma linguagem teatral em sua mise-en-scène, com planos longos e circulares para potencializar a imersão na fluência do texto, que tinha como intenção ser o maior destaque. King parece confortável depois das aberturas e filma tudo de um jeito tão protocolar que se desvincula até mesmo de uma direção de caráter mais observador. Tratando-se de uma adaptação teatral, a diretora poderia ter adotado uma linguagem parecida com a de Denzel no filme citado e realmente explorar a teatralidade do texto, que vem somente pela articulação livre das atuações, todas muito boas, mas conduzidas por um parâmetro mais realista de encenação que torna os acaloramentos do roteiro muito mornos em termos dramáticos.

Talvez por ser estreante, a inexperiência falou mais alto e a zona de conforto ficou nessa linguagem mais biográfica, um tanto contraditória à ideia inicialmente muito bem driblada de pouca firula de contextualização. Assim, Uma Noite em Miami se torna um daqueles filmes melhores pelo que oferecem – história inusitada, específica e importante para parâmetros atuais, com produção majoritariamente negra que orgulharia o quarteto biografado – do que pelo impacto da forma como são contados. Ainda assim, é um bom filme, digno de representar o legado que valoriza.

Uma Noite em Miami (One Night in Miami | EUA, 2020)
Direção: Regina King
Roteiro: Kemp Powers
Elenco: Kingsley Ben-Adir, Eli Goree, Aldis Hodge, Leslie Odom Jr., Lance Reddick, Christian Magby, Joaquina Kalukango, Nicolette Robinson, Michael Imperioli, Lawrence Gilliard Jr., Derek Roberts, Beau Bridges, Emily Bridges, Hunter Burke, Randall Newsome, Matt Fowler, Christopher Gorham, Jeremy Pope, Dustin Lewis, Mark Allan Stewart
Duração: 113 minutos

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