Apesar de ser um curta “menos experimental do que deveria”, Uma História da África traz um registro histórico extremamente importante para o público interessado em conhecer certos aspectos da colonização portuguesa em África. Em destaque, estão as campanhas de Portugal no sudeste e sul de Angola, tendo como principal foco o Combate de Mufilo (27 de agosto de 1907) contra os cuamatos (kwamatu) um dos subgrupos dos povos ovambo.
O diretor Billy Woodberry parte de um princípio de espanto, de desconhecimento. Uma fotografia do alferes José Velloso de Castro chamou a atenção do diretor, que achava que a imagem era um registro do período da escravidão mas se tratava de algo do século XX. Velloso de Castro (já encontrei o nome dele grafado com apenas um “L” no primeiro sobrenome) serviu ao Exército português na África por cerca de duas décadas, principalmente em Angola, país onde também dedicou-se à fotografia, deixando um enorme legado fotográfico de campanhas militares, mas também de geografia, fauna, flora, pessoas e eventos culturais do país. No final do documentário, o diretor nos coloca o seguinte aviso, que serve como complemento ao recorte feito para o filme: “[…] Velloso de Castro criou um arquivo de 2374 fotografias tiradas em operações entre 1904 e 1915. Em 1908 publicou em Luanda “A Campanha do Cuamato Pelo Alferes Velloso de Castro.“.
Juntamente com o diretor, partimos da observação dessa fotografia inicial e mergulhamos em um relato de campanha militar entre os colonizadores brancos, suas tropas auxiliares negras e os nativos revoltosos, que lutavam contra acordos entre dominados e dominadores e também contra o processo que pacificação que estava cada vez mais conseguindo o seu intento: exterminando povoados inteiros ou chegando a acordos miseráveis para os nativos… tudo em nome da paz. Não temos grandes surpresas aqui, mas a forma como a história é contada, numa narrativa simples, claramente dramatizada ou reconstituída a partir das fotografias, completa o ótimo trabalho de documentação desse conflito e dá ao filme um grande valor histórico, um peso notável de fonte imagética e de ótimo recorte, inclusive considerando a escolha do diretor pelo que entrou ou não nesse relato de resistência que, ironicamente, é concebido para ser “uma história de filme…“
Em tempo: o diretor disponibiliza ao fim do filme as suas fontes de pesquisa, o que é realmente digno de nota. Aqui vão as citações aos livros e autores. A Campanha dos Cuamatos (Velloso de Castro). História das Campanhas de Angola (René Pélisser). Senhores do Sol e do Vento – Histórias Verídicas de Portugueses, Angolanos e Outros Africanos (José Bento Duarte). E Cuamatos 1907 – Os Bravos de Mufilo no Sul de Angola (Jaime Ferreira Regalado). Nos agradecimentos ainda constam uma chamada para o diretor do Museu do Aljube – Resistência e Liberdade (Lisboa) e também ao Museu Militar de Lisboa.
Uma História da África (A Story From Africa) — EUA, Portugal, 2019
Direção: Billy Woodberry
Roteiro: Billy Woodberry
Duração: 31 min.
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A Morte Branca do Feiticeiro Negro
A primeira vez que ouvi sobre esse filme foi por indicação de amigo. Na hora, imaginei tratar-se de algo relacionado ao excelente livro do professor Renato Ortiz, também chamado A Morte Branca do Feiticeiro Negro. No livro, o que temos é um estudo respeitadíssimo sobre um aspecto cultural e classista que abraçou a religiosidade dos negros escravizados no Brasil, fazendo com que a prática dessas religiões (o foco do livro é a umbanda) se tornasse sincrética por misturar-se com a cristandade da elite escravocrata. Um tipo de morte cultural causada por hum longo período de desumanidade, seguido por um ainda ativo período de desumanização de mulheres e homens pretos, por serem quem são. Essa é a parte externa da coisa. Mas esse curta de Rodrigo Ribeiro foca na parte interna, trazendo à tona um outro problema.
Morte Branca (o curta) é um testamento em forma de lamento. Me trouxe à memória Era Rei e Sou Escravo, de Milton Nascimento, mas neste filme a tristeza impera de tal forma, que o banzo pode ser sentido em toda a parte, retirando as esperanças, dominando a percepção do espectador à medida que as palavras da carta de suicídio de Timóteo, em 1861, atravessam a tela como navalhas. Do sofrimento físico, externo, social, passamos a observar um sofrimento interno, a depressão dentro de um contexto ainda mais sufocante, condenado.
A carta de Timóteo fala de uma dor de deslocamento, a marca da diáspora negra que alimentou séculos de escravidão no Brasil. As imagens do filme assombram. São como terrenos medonhos, amaldiçoados por algo que nada tem a ver com o terreno em si, mas com aquilo que ele não é (a terra de origem do sequestrado) e aquilo que ele é (um lugar de dor, estafa, sofrimento e morte). A carta de Timóteo fala da dor de existir apenas para ser usado pelo outro. E de não ver mais nenhum sentido em servir, em ser falsamente acusado e em sentir na pele a violência, o sadismo de oligarcas brancos, cristãos, homens de bem pretensiosamente civilizados, donos do poder, das terras e dos pretos do Brasil. Um verdadeiro filme de terror social cuja histórica maldição ainda fere. Mata. Segrega e oprime os descendentes de milhares de feiticeiros negros nesse Brasil de negacionismos, ossos e intenções jogadas para baixo do tapete e destruição como lucrativo projeto político.
A Morte Branca do Feiticeiro Negro (Brasil, 2020)
Direção: Rodrigo Ribeiro
Roteiro: Carta de suicídio de Timóteo
Duração: 10 min.