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Crítica | Uma Congregação de Chacais, de S. Craig Zahler

por Ritter Fan
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S. Craig Zahler é um diretor e roteirista que não faz concessões em suas obras cinematográficas e, muito provavelmente por essa característica, que costuma reduzir o interesse das produtoras em distribui-las, só tem, até agora, três longas lançados e todos eles razoavelmente desconhecidos do público em geral, o que é uma pena, já que Rastro de Maldade, Confronto no Pavilhão 99 e Justiça Brutal são obras diferenciadas em seus respectivos gêneros. Mas se os filmes de Zahler jamais ganharam os holofotes, o que dizer de seus romances? Porque sim, Zahler, antes de começar seu trabalho em longas metragens, começou sua carreira nas artes como romancista e seu primeiro livro foi Uma Congregação de Chacais*, de 2010.

A obra é simples e objetiva, não mais do que um faroeste de vingança “ao contrário” em que os vingadores são os vilões e os vingados os supostos mocinhos, com direito a uma estrutura clássica tripartite de convocação dos personagens, jornada esclarecedora e, claro, um conflito carregado de violência no destino do grupo. O estopim narrativo é o recebimento, por parte dos irmãos fazendeiros Oswell (casado, com filhos e em forma) e Godfrey (viúvo, sem filhos e fora de forma) e do mulherengo solteirão e jogador inveterado Richard “Dicky” Sterling, todos instalados na costa leste americana, de convites do casamento do amigo deles James “Jim” Lingham, vindos de Trailspur, no território de Montana. Sentindo algo errado e uma obrigação moral de ir até lá, os três largam tudo para embarcar em uma jornada de trem que os leva até a cidadezinha que, claro, é o local onde a tragédia acontecerá.

Os grandes diferenciais do texto de Zahler são características contrastantes. De um lado, ele imprime sofisticação por meio do uso de vocabulário rebuscado, construções gramaticais complexas (The jaw that was housed in the basement of the blank facade masticated funnel cake, while the head itself shook twice in denial.) e uma bem-sucedida tentativa de trabalhar jargões da época em que a ação se passa (a segunda metade do século XIX, mais precisamente 1888). De outro lado, o escritor não se furta de trabalhar a violência extrema como artifício narrativo, fugindo completamente dos clichês de duelo em rua deserta ou cerco a determinado estabelecimento. Arriscando-me a fazer comparações injustas que podem aumentar sobremaneira as expectativas do leitor, diria que Uma Congregação de Chacais tem texto que lembra Deadwood e ação que lembra Meu Ódio Será Sua Herança. Zahler talvez não alcance o nível de David Milch ou de Sam Peckinpah, mas, considerando que esta é sua primeira tentativa literária**, diria que ele definitivamente já se mostrava no caminho certo.

O romancista faz o uso de todo o clichê possível de faroeste para apresentar seus personagens, mas sempre da melhor forma possível. Oswell é o protagonista, por ser substancialmente a partir de seus olhos que a narrativa é encaminhada, ainda que Zahler faça uso da terceira pessoa onisciente para contar a história. O bom é que o autor não esconde muito os segredos do passado de Oswell e seus amigos, passado esse enterrado juntamente com as armas que eles precisam desenterrar para encarar a viagem. Se há indicações claras de ações escusas em tudo que Oswell, Godfrey e Dicky mencionam antes de embarcarem no trem, tudo é perfeitamente esclarecido durante a jornada em si, por meio de um artifício que, confesso, não consegui gostar: Oswell escreve uma longa carta para sua esposa revelando toda a verdade para o caso de ele não voltar de sua aventura e essa carta, que está integralmente contida no texto do romance, que funciona como instrumento para o que normalmente seriam flashbacks.

Para mim, o problema maior do uso da carta para esse fim – e que não tem nenhuma relação com morosidade ou detalhamento, pois ela funciona bem de forma “independente” – é que ela distancia os personagens dos feitos e criam uma narrativa dentro da narrativa que por vezes parece forçada, ainda que necessária que aconteça. Foi, por assim dizer, uma escolha mais “fácil” para Zahler, já que, mesmo quebrando a redação da carta por Oswell em segmentos menores e mesmo divertindo o leitor com os erros gramaticais do personagem, ele acaba acelerando revelações que poderiam ter servido de instrumento para, talvez, conhecermos melhor – e por suas respectivas vozes – cada um dos personagens principais em momentos diversos.

Mas se há (bom) uso de clichê na forma como os personagens são introduzidos e caracterizados, e aí incluo os personagens de Trailspur, especialmente o xerife Theodore William “T.W.” Jeffries, pai da noiva Beatrice, e seu estoico, mas irônico delegado Goodstead, eles são completamente absorvidos pelo ritmo que Zahler imprime à história e a capítulos particularmente geniais, como um completamente dedicado à dança na noite anterior à cerimônia de casamento em que é perfeitamente possível “ouvir” a música e “ver” a coreografia pela forma como ele escreve os parágrafos. Claro, é a calmaria antes da tempestade, mas é uma abordagem realmente excepcional.

Seja como for, Zahler joga tudo pela janela, no bom sentido, quando a longa sequência climática realmente começa com vigor. Gradualmente, o que já era toda uma atmosfera tensa, lúgubre, finalista mesmo, vai ganhando outros contornos com a mesma lentidão torturante que ele mostra já no capítulo de abertura do romance em que o autor dá uma “palhinha” desse seu estilo ao apresentar dois irmãos pistoleiros mal-encarados. É como uma efetiva tempestade que vai se formando ao longe, mas que volta e meia descarrega relâmpagos e trovões com força estarrecedora e lancinante, criando momentos em que o leitor não consegue ver como algo assim acabará minimamente bem para quem quer seja. E, desnecessário afirmar – pelo menos para quem conhece seus filmes -, o uso de violência é generoso e muito original, mas sem jamais parecer diferente o suficiente para que o leitor ache forçado. Para que se tenha uma ideia, chega a um ponto em que o faroeste típico abre espaço para o horror completo, inclusive body horror, em uma passagem de gênero construída de forma natural e orgânica que é resolvida sem enrolações, sem o que esperamos tipicamente de obras que transitam somente entre o preto e o branco.

O começo da carreira literária de S. Craig Zahler não poderia ser melhor. Uma Congregação de Chacais captura o leitor da primeira à última página exatamente como acontece com seus filmes, deixando-o cansado, triste e enraivecido ao final, mas, ao mesmo tempo, com uma estranha sensação de querer ler mais sobre todo esse universo doente e violento que o autor parece ter prazer em criar.

*  Tradução direta do título original em inglês – A Congregation of Jackals – já que a obra não foi lançada no Brasil na data de publicação da presente crítica. 

** O livro tem duas versões, na verdade. A original de 2010 e a “versão preferida do autor”, de 2017, sendo esta segunda a que li para a presente crítica.

Uma Congregação de Chacais (A Congregation of Jackals – EUA, 2010)
Autor: S. Craig Zahler
Editora: Raw Dog Screaming Press
Data original de publicação: 24 de agosto de 2010
Páginas: 336

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