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Crítica | Uma Cilada Para Roger Rabbit

por Roberto Honorato
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Eu não sou uma pessoa má, só fui desenhada deste jeito.

Robert Zemeckis é um dos diretores mais versáteis e inovadores da indústria, e mesmo com filmes como Forrest Gump: O Contador de Histórias e a trilogia De Volta Para o Futuro no currículo, o seu trabalho mais impressionante — acredite ou não — é Uma Cilada Para Roger Rabbit, adaptação da obra literária de Gary K. Wolf, Who Censored Roger Rabbit (Quem Censurou Roger Rabbit?), só que bem mais engraçado e menos sombrio (sério, pesquise sobre o livro, é completamente diferente em tom).

O filme se passa em um universo onde humanos e desenhos animados convivem de forma harmoniosa. Ou é o que parece, já que o famoso coelho Roger Rabbit (dublado por Charles Fleischer) acaba de ser acusado de um crime que alega nunca ter cometido. Para limpar seu nome, procura Eddie Valiant (Bob Hoskins), um detetive durão que não parece ser muito fã das figuras animadas. Mas tem gente que realmente os detesta e está desenvolvendo uma arma que consegue tirar a cor e a vida de qualquer desenho.

Lançado em 1988, ainda é surpreendente o que Zemeckis fez com esse filme. Além de desenvolver vários personagens envolventes e memoráveis como o próprio Roger e sua esposa Jessica, aqui temos incontáveis referências aos clássicos animados e — até o momento (2018) — a maior reunião de personagens de estúdios diferentes do cinema, todos dublados por seus atores originais. É a primeira vez que podemos ver Mickey Mouse interagindo com Pernalonga, sem contar a cena onde o pato Donald e Patolino brigam durante um concerto de piano, que se tornou uma das mais conhecidas da película. Mesmo com todas as restrições exigidas pelos estúdios (como manter o mesmo tempo de tela para os personagens e não descaracterizar qualquer mínimo detalhe de sua personalidade), tudo deu certo e temos esse filme que foi um marco na indústria, não só com seus avanços técnicos, mas as formas inovadoras de executar sequências consideradas impossíveis, envolvendo a interação entre atores live-action e personagens animados. Obviamente, não foi nada fácil. Na verdade, os bastidores deste filme revelam que deve ter sido um pesadelo para o departamento de animação.

Para manter as particularidades estéticas das animações clássicas da década de 1940 no filme, a equipe criativa decidiu seguir o projeto sem o uso de computadores, o que hoje em dia seria completamente impossível pela questão orçamentária e o tempo requerido para tamanho esforço. Uma Cilada Para Roger Rabbit traz mais de mil ilusões óticas e, para conciliar a quantidade de frames por segundo entre atores e desenhos, foram necessários mais de 82 mil frames de animação. Tudo fica pior quando você lembra que o único jeito de realizar algo assim na época seria colocando camadas e camadas de células de animação e película em uma pilha, ou seja, eu provavelmente pediria demissão depois de trabalhar neste filme. Um exemplo é a cena do esconderijo, que envolve Roger batendo a cabeça em uma lâmpada ligada. O movimento da lâmpada balançando e iluminando o local não poderia deixar de fazer diferença na animação, então tiveram que desenhar tudo no tempo perfeito e com a iluminação precisa para que não houvesse erro técnico ou de continuidade. Esse tipo de dedicação é o que faz este filme tão impressionante.

Mas não é só a parte técnica que fez um bom trabalho, todo o enredo é bem mais inteligente do que parece e fala bastante sobre temas que você não esperaria em um filme sobre um coelho casado com a mulher mais sensual de um mundo animado onde bebês falantes fumam charuto quando não estão na frente das câmeras… Pensando bem, esse filme não parece tão inocente assim.

É um filme familiar, mas ao mesmo tempo é um noir clássico, cheio de mistério, reviravoltas e personagens enigmáticos, só que desta vez cheio de cor, vibrante e bem humorado. Pode brincar com o formato e fazer piadas com o gênero e referências às animações estilo Tex Avery da Era de Ouro, mas também traz um pano de fundo dramático, onde o detetive Eddie não consegue superar a morte do irmão, assassinado de forma covarde por um desenho (e daí vem o ódio de Eddie pelos cartoons).

Depois de um tempo muitas pessoas também passaram a notar que o filme tem um forte comentário social que pode ser ligado ao período onde a segregação racial tomou conta do país. Os humanos tem seu próprio clube, o Ink ‘n’ Paint, onde os desenhos só podem servir como funcionários ou atrações artísticas. Até mesmo o plano do Juiz Doom, interpretado por Christopher Lloyd, de acabar com um dos poucos meios de transporte para a população com baixa renda, com a intenção de criar uma estrada para os “humanos mais abastados”, é uma clara ligação ao fenômeno da gentrificação. Isso tudo está lá, de forma mais sutil para que o filme seja mais acessível para o público. Mas são claras as intenções do roteiro. Não é por acaso que o filme se passa em 1947, época onde ainda eram institucionalizadas as Leis de Jim Crow, que determinavam incontáveis leis contra os direitos dos negros.

Tudo bem, fui por um caminho mais sério agora, mas vamos dar uma diminuída na parte política e focar no cinema.

Uma Cilada Para Roger Rabbit tem um charme próprio, talvez por conta do envolvimento de Steven Spielberg na produção. Parceiro de Zemeckis em vários projetos, Spielberg é apaixonado por animações (tanto que é responsável por uma das minhas favoritas: Animaniacs) e conhecido por fazer um cinema bem vivo e cheio de coração, supervisionando tudo com muita atenção, dando foco na química entre personagens e mantendo tudo o mais consistente possível. Se não fosse por ele e seus recentes sucessos de crítica e público – coloque aí um Tubarão, some com Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros e ainda coloque na conta um E.T. – O Extraterrestre -, talvez não fosse tão fácil assim conseguir aquela junção entre estúdios.

Uma Cilada Para Roger Rabbit é quase um milagre cinematográfico. É um deleite visual, tem um enredo encantador, recheado de personagens carismáticos e envolventes e é um gigantesco esforço de uma equipe diligente dando o máximo que pode. É como diz o diretor Brad Bird (enquanto tentava parafrasear Lance Armstrong, comicamente): “A dor é temporária, o filme é para sempre”.

Uma Cilada Para Roger Rabbit (Who Framed Roger Rabbit) – EUA, 1988
Direção: Robert Zemeckis
Roteiro: Jefrey Price, Peter S. Seaman, baseado no livro de Gary K. Wolf
Elenco: Bob Hoskins, Christopher Lloyd, Joanna Cassidy, Charles Fleischer, Stubby Kaye, Alan Tilvern, Joel Silver, Paul Springer, Betsy Brantley, Mel Blanc, Tony Anselmo
Direção: 104 min.

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