Negociar é algo que envolve criatividade, objetivos devidamente delineados, capacidade de comunicação com eficiência, dentre outros atributos entre as partes envolvidas. Quando pensamos em negociações, geralmente associamos com dinâmicas administrativas no âmbito corporativo, mas este ato é algo essencial para qualquer esfera de nossas vidas. No conto Um Que Vendeu Sua Alma, do escritor brasileiro Lima Barreto, podemos contemplar uma estratégia de negociação interessante. O que está em jogo, por sua vez, não é a barganha em torno de uma casa, automóvel ou qualquer outro bem de ordem material. O que está estabelecido na situação é a mercantilização da vida. Aqui, podemos considerar que o personagem descrito ao longo da anedota é uma das vítimas do esquema capitalista que propõe o massacre de individualidades e propaga incêndios que aniquilam a fraternidade e a harmonia entre os humanos. Mergulhado em no fetichismo mercadológico que nos dita a forma como nos comportamos em um contexto social de mudanças vertiginosas, a figura ficcional de Lima Barreto pode ser qualquer de nós.
Mas, por quais motivos? Na história curtinha, o narrador nos traz a trajetória de seu amigo. A personagem apresentada é aquilo que chamamos de “fracassado”. Sem dinheiro para curtir os prazeres que a vida pode oferecer, na solidão da falta de companhia, provavelmente ocasionada por esta falta de atributos financeiros, ele decide negociar, de forma distributiva, a sua vida. Neste modelo de negociação, falando administrativamente com você, caro leitor, temos uma negociação onde ambas as partes se sentem contempladas, mas uma delas leva mais vantagem que a outra. É o que acontece quando o personagem trata de sua vida com o Diabo, figura que no conto aparece de forma mais realista, sem chifres, pés animalescos e outras caracterizações que o aproximam da abominação. Irônico, como um bom leitor de Machado de Assis, o escritor desenvolve a sua história permitindo que também possamos interpretar o Diabo como uma alegoria para o sistema capitalista, arauto das mudanças na ocasião do conto.
Quando publicado, Um Homem Que Vendeu Sua Alma contextualizava as modificações da cena urbana no Rio de Janeiro, espaço onde Lima Barreto estava situado. A urbanização, a industrialização e, consequentemente, as mudanças espaciais, trouxeram para as pessoas o progresso tão desejado, mas também dinâmicas de coerção social e psicológica que não inseriam todos os presentes neste palco da vida. Quem estava de fora, isto é, aqueles que não gozavam dos privilégios do capital adoeciam em seus respectivos empobrecimentos. Não tinham acesso aos bens culturais, ao básico no acesso ao sistema de saúde, acossados por todo tipo de insegurança: alimentar, nutricional, etc. Trazido para o nosso contexto, de avanço vertiginoso do sistema capitalista e suas transformações tecnológicas, podemos perceber o quão este conto é atual, pois ainda nos sentimos, ou então, conhecemos indivíduos que se dizem falidos e, diante das pressões estruturais deste sistema opressor, vendem as suas almas para sobreviver.
Assim, as consequências de tudo isso são empréstimos com juros cada vez mais altos, antecipações de saques de FGTS a cada esquina, planos de saúde que não cobrem as necessidades mais caras quando precisamos de um atendimento mais expansivo, mercadorias cada vez mais caras para suprir o básico em nossos lares, dentre outras coisas sufocantes que deixariam este parágrafo longo. Neste processo, como não se entregar e vender a sua alma? Quem não vende, fica de fora, atravessando privações exorbitantes. Muito complicado. E interessante observar que, numa história tão curta, publicada pela primeira vez em 1909, Lima Barreto conseguiu descrever o ser humano da modernidade, antepassado do contemporâneo, todos numa linhagem de exclusão, à beira do precipício e caminhando para se tornar obsoletos. Melancólico, o personagem negocia com o Diabo para tentar melhorar a sua vida, mas o que consegue está muito abaixo daquilo que ele precisava. Ainda assim, fecha o seu negócio.
Mergulhado no vazio existencial e inerte diante do marasmo, a figura ficcional central de Um Que Vendeu a Sua Alma parece interessado em largar este mundo, mas sem recorrer ao suicídio. O narrador, na posição de amigo, é uma testemunha da situação. Observa tudo com distanciamento, mas não deixa de especificar detalhes na jogada onde a vida é o alvo da negociação, recurso que vale tão pouco que faz o Diabo considera-la uma mercadoria sem o tom valioso de outrora. A existência do personagem, para a figura sobrenatural, é banal, por isso, requer mais diálogo para que a barganha seja favorável exclusivamente para um dos lados, neste caso, o empreendedor que oferta para o homem em desgosto um valor irrisório, tendo como vantagem a sua alma para a eternidade. Dilacerante, a situação no conto é uma ótima reflexão sobre a realidade que se vive e aquilo que nós almejamos profundamente, muitas vezes, sem o sucesso esperado. Ademais, a história no lembra do mito de Fausto, homem que vendeu sua alma para o Diabo em troca de poder e conhecimento, transformado em poema por Goethe.
Em linhas gerais, um conto simplório do ponto de vista literário, mas contundente em sua temática. A publicação nos remete também, salvaguardadas as devidas proporções, ao que Charles Baudelaire fez em As Flores do Mal. Em suas composições poéticas situadas no mesmo contexto de época, mas em Paris, o canônico escritor francês delineou os choques sociais causados pelos desdobramentos da modernidade. O progresso, tão necessário para e evolução econômica, trouxe consigo mudanças nas paisagens sociais e, consequentemente, na maneira como os seres humanos se comportavam em suas interações. Uma das coisas foi o processo de coisificação do homem, algo contemplado em cada linha de Um Que Vendeu Sua Alma. Sucesso ou fracasso dentro da sociedade? Com um indivíduo na ofegante fuga de si mesmo, o conto nos mostra uma criatura massacrada pela estrutura social onde pavimenta a sua história, disposto a negociar, mesmo que de forma distributiva, a sua existência. Não há espaço para negociação integrativa ou colaborativa. Aqui, a mercadoria vale pouco e qualquer chance de vender o seu produto para se salvar, mesmo que peremptoriamente de algo, é visto como vantagem.
Um Que Vendeu a Sua Alma — Brasil, 1909
Autor: Lima Barreto
Editora: Companhia das Letras
5 páginas