Um homem de trinta anos, sem casa própria, sem carro, sem esposa e, em dado momento do filme, sem emprego. Como se não bastasse tudo isso, ele ainda carrega algumas amarguras do passado e convive com o desdém de seu pai, da qual ainda vive sob seu teto, portanto sofre com o duro tratamento dele. Alberto Salvá, responsável pela direção e roteiro, expõe a ruína em torno de um cidadão que representa, em maior ou menor medida, a vida de milhões de brasileiros. Desempregados, sem o ensino básico, dependentes dos pais, e com a frustração de não terem gozado do passado e terem medo do futuro.
Se o filme O Posto apresenta a introdução à vida adulta – isto é, o início dos primeiros anos desta fase -, em Um Homem Sem Importância esse estudo de personagem se dá pela decadência de alguém que já passou desse estágio e está deixando a juventude. Na obra italiana, há a descoberta do mundo, os passos iniciais de um novo adulto sob toda uma ótica juvenil. Mas no filme de Salvá o que há é a repetição acompanhada do desencanto de envelhecer, de ver a vida passar e nada mudar. Um Homem Sem Importância foca naquilo que é antigo, mas que se mantém presente. E a sua repetição compõe um indivíduo perdido em meio ao lugar-comum.
Tudo isso poderia render um filme cinzento, cuja dramatização levasse ao extremo os problemas do protagonista Flávio, no entanto o roteiro sintetiza as suas tensões com momentos despojados, românticos e, até mesmo, aleatórios. A sequência do japonês massagista é o caso de uma parte isolada e que pode soar gratuita para alguns, mas acaba servindo para intercalar as situações em que Flávio trata de seu desemprego, dando um toque necessário de humor e arbitrariedade entre as sequências.
Um dos pontos mais significativos do filme é o contraste entre Flávio e os mauricinhos da Zona Sul. Primeiro chama a atenção a total insolência de uma jovem modelo enquanto joga boliche, local onde Flávio trabalhava e foi desrespeitado por ela, causando assim a sua demissão. Depois, os dois se reencontram, e ela busca uma retratação. Mas a garota e seus amigos não têm consciência do estrago causado por tais atos, o que eles querem com o coitado é apenas curtir e aproveitar a juventude. São pessoas que desconhecem as durezas da vida, estão deslocadas das exigências e carências na rotina do brasileiro médio. A moça do grupo diz que não há problema em Flávio adiar suas tarefas, pois ela fez o mesmo hoje em seu trabalho como modelo. Já um rapaz sugere a Flávio que ele se mude para a Zona Sul, como se fosse a coisa mais simples do mundo. A alienação daqueles jovens é tão intensa que um deles demonstra o quão cretino é ao citar “um problema grave em sua vida”, que é o fato de seu pai ter pedido para que ele trabalhasse.
Nesta sequência, Flávio, ao se deparar com aqueles jovens usufruindo do melhor que a idade deles pode proporcionar, acaba relembrando de sua juventude. Uma fase desprovida de diversões e preenchida por trabalho desde a adolescência. Suas lágrimas, assim como outras partes do filme, evidenciam as desigualdades sociais em um aspecto fundamental e enfático: enquanto uns riem e bebem, outros carregam peso e se sujam. A vida e a juventude dura mais para os primeiros, já aos demais cabe não refletir sobre a realidade para tentar se desviar de uma cruel angústia.
Mas o maior desafio daquele dia para Flávio não foi arranjar um novo emprego, e sim lidar com seu pai. Um sujeito rude e desprezível, que o ataca de forma asquerosa, sendo ele o principal responsável pelas pedras no caminho de Flávio. No final do filme, o conflito entre os dois atinge o seu ápice, a troca de críticas vai ficando cada vez mais dura, atingindo a violência física num momento de explosão carregado de intensa brutalidade. Flávio exterioriza as suas amarguras, discursa sobre o sujeito degradante que o pai dele é, ao ponto do próprio, segundo a fala de Flávio, não querer que seus filhos se formem porque ele mesmo não conseguiu. Numa das sequências mais calorosas do cinema brasileiro, o longa consegue ultrapassar a cena do aniversário em Vidas Amargas, dando ao espectador sensações de euforia e inquietação, e transmitindo também as tensões nos nervos de Flávio.
Dominado por planos médios em uma posição estática, a câmera de Alberto Salvá realiza um trabalho minimalista que fala muito dizendo pouco, tornando a obra intimista ao passo em que a decupagem se mantém inerte. A atuação de Oduvaldo Vianna Filho, que vive o papel principal, acompanha com perfeição as diversas alterações no tom do personagem. Sua simpatia em alguns momentos, indignidade em outros e, principalmente, a raiva à flor da pele na briga com o seu pai, em que ele adquire um vigor demoníaco quanto a revolta colhida, garantem as virtudes de uma interpretação heterogênea dotada de abordagens diferenciadas.
Quase todo o filme gira em torno de um único dia. Um dia de sucessos e insucessos, de repetições e surpresas, de paixão e fúria. Mas o que será que resta depois desse dia? A vida de Flávio continuará tão mesquinha quanto tem sido? Ou os acontecimentos desse dia serão o ponto de partida para uma série de mudanças? Aquele homem que acumulou fracassos durante toda a vida agora se vê em meio a uma série de situações que revigoraram a sua existência, e tudo isso ao lado das diversas recusas nas vagas de emprego que tanto procurou. Do péssimo tratamento de certa turma de amigos surgiu uma espirituosa amizade com eles, da impossibilidade de ingressar num bom emprego veio uma mulher da qual ele despejou enorme afeto e, por fim, através das infames palavras de seu pai, houve um momento em que ele se sentiu mais humano, e o silêncio deu lugar a sinceridade. Naquele dia de muitas portas fechadas criou-se também o dia mais importante na vida de um homem sem importância.
Um Homem Sem Importância (1971) – Brasil
Direção: Alberto Salvá
Roteiro: Alberto Salvá
Elenco: Oduvaldo Vianna Filho, Glauce Rocha, Rafael de Carvalho, Lícia Magna, Dartagnan Mello, Kazuo Kon, Mário Prieto, Dita Corte Real, Célio de Barros, Sílvio Fróes, Alberto Salvá, Geraldo Gonzaga, Amaury Alves
Duração: 72 minutos.