O roteirista David E. Kelley se tornou uma marca do universo televisivo. Entre obras excelentes e outras razoáveis, o artista é um chamariz das telinhas, ganhando a atenção de emissoras da televisão aberta, canais de televisão pagas como a HBO e, mais recentemente, no interminável catálogo dos streamings. Infelizmente, porém, sua mais nova produção Um Homem por Inteiro, minissérie baseada no livro homônimo de Tom Wolfe, é um de seus trabalhos mais ruins, o que é uma grande pena, já que sua experiência com dramas jurídicos e obras com comentários sociais se casa perfeitamente com a premissa dessa adaptação, que segue um magnata do mercado imobiliário chamado Charlie Crooker (Jeff Daniels) lutando contra a falência.
O início da produção soa quase como uma versão mais pobre de Succession, só que com um tom fortemente satírico e com muito interesse em diferentes representações das classes sociais em Atlanta, passando por diversos núcleos narrativos, da aristocracia até a classe operária. Não li o livro, mas o conceito por trás da produção é interessantíssimo, podendo mesclar diferentes temas em uma história que faz críticas dramáticas sem perder o bom humor do sarcasmo e da ironia, enquanto cria um cenário que traz atenção para tópicos sobre poder, racismo, política e capitalismo. A grande questão é que Kelley nunca realmente consegue tecer suas subtramas de uma maneira coesiva, tampouco mantém um tom bem delineado durante a temporada, que mais parece um texto atirando para todos os lados sem se aprofundar em nada.
O melhor exemplo desse problema talvez seja a utilização do humor. Em quase todas as cenas envolvendo Crooker, existe uma leve tentativa de desenvolver um trabalho satírico, passando pela construção debochada e clichê do personagem, que tem um forte sotaque sulista, uma mulher troféu, vive de exageros e é a personificação do orgulho. Ao longo da temporada, temos ensaios divertidos com o personagem, como quando força outro bilionário a ver cavalos transando, quando quer colocar um joelho robótico para se sentir jovem e especialmente quando se envolve em rixas infantis com dois banqueiros invejosos, chegando ao ponto de cogitarem uma luta no estacionamento.
Alguns dos diálogos dessas cenas beiram o ridículo e o constrangedor, mas há uma intenção bacana em se fazer comédia de todo esse embate de poder e dinheiro. Mas esses momentos dividem espaço com uma trama tangencial sobre a prisão injusta de um jovem negro, com um trabalho tenso e denso sobre as injustiças do sistema criminal dos EUA, críticas à brutalidade policial e muitas cenas violentas dentro de um complexo prisional. A montagem e a direção até tentam dar um sentido à narrativa, principalmente através do personagem Roger White (Aml Ameen), que é o elo de ligação entre as duas tramas, mas a temporada nunca se encaixa tonalmente ou emocionalmente. E pior, o núcleo jurídico eclipsa a história principal de Crooker ao ponto do protagonista perder espaço na temporada e soar quase subsidiário na reta final da minissérie.
Se não fosse o bastante, Kelley incha a produção com mais personagens superficiais e arcos não desenvolvidos, passando pela trama de um político afro-americano jogando sujo; um banqueiro quebrado buscando vingança; e uma empresária vítima de estupro que é esquecida no último episódio – a personagem é interpretada por uma ótima Lucy Liu, infelizmente desperdiçada na temporada. O roteirista não consegue convergir os personagens ou suas respectivas tramas de uma maneira satisfatória, deixando uma impressão de superficialidade e de indiferença com os eventos e as dinâmicas da obra. Os comentários sociais estão lá, alguns jogados na nossa cara como a alusão ao caso de George Floyd, outros só apresentados sem desenvolvimento como o descarte da linha sobre misoginia, mas nada efetivamente aprofundado.
Quando Um Homem por Inteiro se apresenta como um estudo satírico de masculinidade tóxica, orgulho e poder, é possível vermos um trabalho interessante. Quando a minissérie quer ser um drama social sobre classes, também vemos a possibilidade de uma história engajante com comentários sociais pertinentes. Infelizmente, David E. Kelley quis fazer ambos, misturando drama jurídico, deboche sobre a aristocracia, uma campanha política, jogos sobre poder e mais um milhão de tópicos que rendem uma minissérie cheia de boas ideias mal executadas e que não conversam entre si. O desfecho da obra é quase cômico, tão abrupto quanto desinteressante, desvanecendo de nossa memória tão rápido quanto cairá em esquecimento no vasto conteúdo da Netflix e no corpo de trabalho de Kelley.
Um Homem por Inteiro (A Man in Full) – 1ª Temporada | EUA, 2024
Desenvolvimento: David E. Kelley (baseado no livro homônimo de Tom Wolfe)
Direção: Regina King, Thomas Schlamme
Roteiro: David E. Kelley
Elenco: Jeff Daniels, Diane Lane, Tom Pelphrey, Aml Ameen, Chanté Adams, Jon Michael Hill, Sarah Jones, William Jackson Harper, Lucy Liu
Duração: 06 episódios de aprox. 60 min. cada