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Crítica | Um Homem Diferente (2024)

O corpo fala.

por Luiz Santiago
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A insatisfação é uma das características mais inquietantes do ser humano. Às vezes, nem mesmo em cenários ideais de condições financeiras ou até mesmo amorosas as pessoas se sentem completas, preenchidas em sua essência, em sua alma. Muitas explicações podem aparecer para estes fatores. Alguns entenderão isso como uma questão espiritual. Outros, como resultado de desequilíbrios psíquicos. Alguns conseguirão preencher o vazio, ao longo da vida; ou pelo menos fingir que esse vazio não incomoda tanto assim. Mas mesmo nas risadas sociáveis e na aparente calmaria emocional, os “homens ocos”, com seus corações feridos, farão um grande escândalo (interno ou externo) por tudo aquilo que querem, mas que não podem ter. Ou pelo que perderam. E, em muitos casos, por aquilo que nunca tiveram. 

Esta é a situação de Edward (Sebastian Stan), um homem que possui uma deformidade na face que o torna vítima de todo tipo de rejeição e olhares de repulsa por onde passa. Fruto da mesma safra de A Substância (2024), Um Homem Diferente é um filme que toca superficialmente no body horror, mas acaba seguindo pelo caminho da comédia sombria e ácida, num momento até chamando atenção para si mesma, à guisa de autocrítica, falando sobre explorar a deformidade física de um ator (nesse caso, uma referência à real condição de Adam Pearson, que interpreta com absurda qualidade o personagem Oswald), ou utilizar uma máscara para mimetizar essa deformidade, com um galã no papel. Isso ocorre porque, ainda no primeiro ato, Edward passa por um tratamento e sua aparência muda por completo, tornando-o inapto — ou eticamente questionável — para interpretar o personagem que uma vizinha dramaturga (Ingrid, interpretada por Renate Reinsve) escreveu para ele. 

Assinando direção e roteiro, Aaron Schimberg, que já tinha trabalhado o tema da deformidade física/facial com diálogos metalinguísticos em Chained for Life (2018), também com Adam Pearson no elenco, faz aqui um curioso suspense macabro onde o que seria considerado a “normalidade”, para um indivíduo, acaba sendo um inferno ainda pior do que sua condição primária. Sebastian Stan torna Edward um homem que pula a escala de emoções muito rapidamente, e que parece ressentir-se com muita intensidade por coisas que seriam facilmente remediáveis. É uma interpretação que começa simples, sem muito impacto para além da excelente maquiagem, mas que vai se tornando inquietante e muito chamativa, mesmo quando a mudança de fase na vida do protagonista, nas cenas finais, exige uma postura mais calma e pouco falante — criando mais um momento para o ator utilizar de ótimas expressões corporais e faciais para se expressar.

Adam Pearson, que sofre de neurofibromatose tipo um, uma doença rara que faz com que tumores benignos cresçam no tecido nervoso, realiza aqui o seu primeiro protagonismo num filme de maior expressão, interpretando um indivíduo meio diabólico, extremamente confiante e com uma capacidade de manipulação, controle e poder sobre os outros, que faz o espectador temer que ele seja o vilão a revelar os “segredos” de Edward ou coisa pior. É com a entrada dele que o personagem de Sebastian Stan começa a ganhar muita força e qualidade dramatúrgica sensível, tentando manter um papel teatral que não lhe cabia mais, e um interesse amoroso que já tinha dito deixar um rastro de tragédia por onde passava. A virada de jogo, no filme, é justamente a perda de uma parte da identidade, de elementos familiares e importantes para um homem, enquanto outra pessoa, alguém que supostamente “deveria ser rejeitado e colher os maus frutos de sua aparência”, começa a dominar tudo, inclusive a mente do “homem oco” que não conseguiu fazer nada de importante desde que se tornou alguém socialmente aceito.

A cena mais próxima do horror, aqui, é a de “mudança de rosto” de Edward, que não é exatamente um momento de boa direção. Há um tom propositalmente amador nesta cena que, de tão autoindulgente, termina sendo vergonhoso. Existem outras piscadelas para o gênero, no decorrer da obra, mas o diretor não utiliza nenhuma delas para contar a história. Seu interesse é acompanhar de forma aterradora os passos do “homem diferente” que Edward se torna, e como ele goza pouquíssimo tempo da tão desejada “normalidade”, passando a odiar o fato de ter mudado, porque a vida que tinha, sendo o centro dos olhares de todos, das frases de empatia distanciada e de perguntas que o faziam se sentir degradadamente importante, simplesmente não existe mais. Ele até pode chamar atenção por ser um homem bonito, mas é só mais um dentre tantos. E isto é algo que o seu desejo por atenção exclusiva não consegue aceitar. 

Edward criou uma dependência em ser vítima. Por isso, sentiu de maneira tão intensa a chegada de Oswald, que vive com as mesmas condições que antes atormentavam Edward, mas de maneira completamente empoderada. É quase uma ofensa, portanto, que este homem chegue e mostre a Edward que era possível ter uma vida plena, a despeito de sua aparência e das rejeições que ela trazia. O diretor Aaron Schimberg reforça essa diferença de personalidade através de um soberbo diálogo com a trilha sonora, que guia momentos pontuais de cada um, floreando suas atmosferas narrativas, reforçando a fraqueza de um e a fortaleza de outro. Por ter a peculiar característica de se passar nos nossos dias, mas parecer um filme dos anos 1970, Um Homem Diferente nos dá a impressão de que a história é mais séria e com um toque mais “clássico” do que parece à primeira vista. O filme se beneficiaria de uma edição mais rigorosa, talvez encurtando-o um pouquinho, mas nada que comprometa de forma definitiva a qualidade da produção. 

O rosto dos sonhos de Edward é transfigurado em um pesadelo que o exclui dos espaços que sonha — sua beleza é o seu azar. Este é um dos temas mais fortes que atravessam o filme, e o diretor não faz grandes comentários filosóficos a respeito dos impactos e consequências dessas questões. Um Homem Diferente quase chega a ser um filme automático, de tão direto que é. Até o espectador menos atento entenderá as nuances centrais do enredo e alguns dos principais caminhos interpretativos que a obra nos permite ter, tudo isso porque concentra suas forças nas atuações e em tudo o que essas performances consegue nos transmitir de desconforto, medo e expectativa de ações ruins. Está tudo lá, no rosto do elenco. E isso é bastante positivo, embora enfraqueça outro aspecto da fita, que poderia receber maior atenção, sem prejudicar a escolha inicial. Para Edward, a saudade da “outra vida” é tamanha, que ele sequer permite alguém ofender seu inimigo. É pessoal demais para ele. Mas não pelo que classificaríamos como “motivos corretos“. Ele está preso num corpo dos sonhos, lamentando o que poderia ter sido da sua vida, se nada tivesse mudado. A definitiva zona de conforto de alguém que não amadureceu e nunca aprendeu o significado da expressão “seguir em frente“. Um homem diferente… apenas na aparência.    

Um Homem Diferente (A Different Man) — EUA, 2024
Direção: Aaron Schimberg
Roteiro: Aaron Schimberg
Elenco: Sebastian Stan, Adam Pearson, Miles G. Jackson, Patrick Wang, Neal Davidson, Jed Rapfogel, Marc Geller, James Foster Jr., Lawrence Arancio, Renate Reinsve, John Keating, Malachi Weir, Nina White, Doug Barron, Stephee Bonifacio, Liana Runcie, Michael Shannon
Duração: 112 min.

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