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Crítica | Um Condenado à Morte Escapou

Liberdade e fé.

por Kevin Rick
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Um Condenado à Morte Escapou, quarto longa-metragem do cineasta francês Robert Bresson, começa com uma frase do próprio diretor: “Esta é uma história real. Contei como aconteceu, sem enfeites“. Ao fundo, vemos uma prisão. Logo em seguida, o filme nos mostra uma placa explicando os trágicos acontecimentos históricos que o longa é baseado. O local em questão é o Fort Montluc, onde mais de 10.000 homens foram presos, sendo que desse número, mais de 7.000 morreram sob a ocupação nazista na França dos anos 40. Durante esse período, a narrativa acompanha Fontaine (François Leterrier), um lutador da Resistência que foi capturado. O personagem é baseado em um livro de memórias do pós-guerra de André Devigny, que escapou de Montluc no mesmo dia em que deveria morrer.

Para além da declaração sobre a história verídica, o que realmente me fascina na frase de Bresson está na segunda parte, mais especificamente o “sem enfeites“. Conhecido por seu estilo realista, minimalista e por uma simplicidade enganosa, Bresson não se abstém da sua linguagem para fazer um filme de fuga ou de guerra convencional. Muito pelo contrário, Bresson é extremamente atípico em termos de representação do nazismo e/ou do puro entretenimento que segue filmes de escapadas. Guardas nazistas são figuras desimportantes, indo e vindo sem rostos ou ações. O cineasta também não está interessado em evidenciar violência, torturas e massacres. E Bresson muito menos se preocupa com algum tipo de efeito grandioso ou heroico, à la clássicos do subgênero como Fugindo do Inferno ou Alcatraz – Fuga Impossível  – obras-primas por seus próprios méritos, na minha opinião.

O que realmente importa para Bresson é um exame minucioso de detalhes para acentuar o torturante tédio e a espera sem fim da vida na prisão. Por grande parte da narrativa, observamos Fontaine procurando formas de fugir da sua hermética cela. Com uma dieta de planos longos, médios, próximos e de inserção, todos superficialmente básicos, cada cena de Bresson tem algo a ser dito e evidenciado de maneira metódica. O modo como Fontaine arranha sua porta enquanto dá espiadas em uma espécie de olho mágico ou então as pequenas batidas na parede para se comunicar com presos vizinhos, são formas que o cineasta encontra de criar aflição e tensão com a espera e a repetição. De certa forma, somos inseridos em sua rotina; conhecemos sinais, horários, movimentos e aprendemos a entender esse mundo como ele.

Assim, Bresson continuamente usa o mínimo possível para alcançar o efeito desejado de absorção da audiência em sua abordagem calma. Cortes são serenos, com a edição criando cenas que se dissolvem umas nas outras. Diálogos são desencarnados, assim como interações quase-inexistentes. Até mesmo a narração de Fontaine é instrutiva e literal, sem criar monólogos abstratos de emoção. É como se cada ferramenta (e o não-uso de várias delas) existissem apenas para dar foco no que é essencial: um homem com medo e aflito usando sua mente para fugir. Só existe ele, seu confinamento e a determinação para viver. E nós acompanhamos cada pedacinho rotineiro dessa luta.

Se entendemos o mundo de Fontaine, Bresson também quer que experimentamos como ele. Vemos isso nas já citadas cenas do olho mágico, em que o cineasta nos coloca na mesma posição de visão turva de Fontaine. Mas Bresson faz isso principalmente com o som, mais especificamente com a falta dele. Com exceção de algumas sequências com músicas de Mozart, funcionando como espécies de interlúdios para divisão de atos narrativos – aliás, Bresson é genial na maneira como renova a trama com diferentes “rotinas”, cadenciando com muito cuidado um longa que facilmente poderia ser pedante -,  Um Condenado à Morte Escapou é quase que inteiramente despojado de trilha sonora.

A parte sonora que acentua o drama está nos sons da vida prisional. O tilintar das chaves dos carcereiros  batendo nos corrimãos e barras da escadaria, a tosse de um vigia, a colher de Fontaine raspando no chão e na porta da cela, o som dos trens passando na noite, os passos de guardas pelos corredores da prisão, etc. Cada ruído evidenciado é mais uma adição realista e atmosférica para um filme que beira a perfeição em termos de imersão da imagem. Aliás, é pensando nisso que Bresson constrói uma experiência sugestiva. A violência (tiros, surras e gritos), além dos vários (e outros) exemplos citados, fazem um exercício do imaginário do espectador, que preenche o visual com o som, assim como é colocado na mesma experiência aterrorizante de um preso escutando a tortura e a morte à espreita por trás do seu confinamento.

É por isso que Um Condenado à Morte Escapou se mostra um “simples enganoso”. O cuidado magistral de Bresson para colocar em foco apenas o que é fundamental para entendermos a angustiante luta de Fontaine, nos situando da rotina tediosa e aflita do protagonista, ao mesmo tempo que constrói um lado implícito de experiência sonora, demonstram a genialidade da sua mise-en-scène. Autêntico até o âmago. Como se não fosse o bastante, Bresson ainda adiciona uma camada de subtexto espiritual e religioso. Na primeira cena que vemos Fontaine, Bresson foca a câmera em suas mãos enquanto o personagem tenta fugir de um carro. Em outro determinado momento, temos uma conversa em que um padre diz a Fontaine que “Deus vai salvá-lo”, ao que Fontaine responde: “apenas se tiver ajuda”. Esse dois momentos em especial, dentre vários do longa, retratam o discurso moral e devoto de Bresson. A fé é essencial, mas faz parte de um processo em que seus personagens são postos em circunstâncias que precisam lutar, prevalecer e perdurar. Fontaine certamente fez isso.

Um Condenado à Morte Escapou (Un condamné à mort s’est échappé) – França, 1956
Direção: Robert Bresson
Roteiro: Robert Bresson
Elenco: François Leterrier, Charles Le Clainche, Maurice Beerblock, Roland Monod
Duração: 99 min.

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