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Crítica | Um Cavalheiro em Moscou

Um vinho para degustar e também para servir.

por Ritter Fan
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Apesar de ter pano de fundo histórico e localização reais, Um Cavalheiro em Moscou é pura ficção. Uma delícia de ficção, vale afirmar, com generosas camadas fabulescas para tornar tudo ainda mais agradável, com direito a uma atuação absolutamente cativante de Ewan McGregor e um elenco de apoio igualmente charmoso e eficiente que conta com Mary Elizabeth Winstead, Fehinti Balogun e Johnny Harris, dentre vários outros. Baseado em romance de 2016 do americano Amor Towles, a adaptação para a TV comandada por Ben Vanstone é um primor de elegância visual e narrativa que, ao longo de oito episódios, leva o espectador por uma jornada de três décadas pela vida de um aristocrata russo que, depois da Revolução de 1917, é condenado a viver o resto de sua vida em prisão domiciliar em um hotel de luxo em Moscou, sem jamais poder botar os pés para fora da porta giratória do estabelecimento.

Escapando da morte por ter a ele atribuído um poema popular de cunho revolucionário, o bigodudo Conde Alexander Ilyich Rostov (McGregor) passa a viver em um quarto minúsculo e acinzentado no sótão do Hotel Metropol a partir de 1921, podendo desfrutar, porém, de todas as dependências do local, inclusive e especialmente o lobby, o bar e o restaurante, que continuam recebendo provisionamento de luxo do governo. Mantendo toda a fleuma da nobreza à que pertencia, Alexander faz questão de barbear-se e vestir-se impecavelmente todos os dias e seguir sua vida da maneira mais próxima ao que ele estava acostumado, com os eventos subsequentes à Revolução Russa alimentando em off a narrativa a cada novo episódio circunscrito aos cenários que reconstroem o luxo do famoso hotel que efetivamente funcionou (e funciona) como hotel antes, durante e depois da implantação do comunismo soviético.

Existem paralelos que podem ser traçados em relação a O Grande Hotel Budapeste, que considero a grande obra-prima de Wes Anderson. Par além do óbvio cenário hoteleiro e das comparações que podem ser facilmente feitas entre o Rostov de McGregor e o Monsieur Gustave H. de Ralph Fiennes, ambos criaturas reféns do hábito e da manutenção da compostura em todas as situações, há os panos de fundo de um país real e outro fictício passando por radicalizações políticas e sociais e o cuidado das duas produções com os detalhes dos espaços confinados que servem de cenário central. Claro que o estilo característico de Anderson inexiste na minissérie, mas ambos compartilham a narrativa de certa forma farsesca e repleto de elementos de contos de fada, com Um Cavalheiro em Moscou, porém, mergulhando no lado sombrio desses contos, seja no passado complicado do protagonista em relação à sua irmã e a seu melhor amigo Mikhail “Mishka” Fyodorovich Mindich (Balogun), seja no presente marcado pela brutalidade de fundo e a vigilância eterna de um governo paranoico.

De maneira semelhante, o citado filme e a minissérie criticam o pano de fundo simplesmente deixando o pano de fundo como tal, sem que seus protagonistas possam efetivamente interferir em alguma coisa de relevo. Claro que, na minissérie, como os eventos são reais, eles falam sozinhos, descontroem-se pelo que sabemos que ocorreu na medida em que uma classe dominante exploradora foi substituída por basicamente outra classe dominante exploradora, em uma subversão dos próprios princípios em que a revolução foi baseada. Mas Um Cavalheiro em Moscou não tem intenção de mergulhar nesses aspectos, pois, como mencionei, os roteiros usam os eventos reais como ferramentas para ajudar na narrativa, mas sem que eles ganhem abordagem direta, com o governo soviético sendo essencialmente representado por Osip Glebnikov (Harris) que é como o carcereiro de Rostov, com os dois, porém, estabelecendo laços hesitantes, mas profundos que são uma constante nos episódios.

E qual é o ponto central então da minissérie? Diria que ele repousa na transformação. Enquanto o mundo fora do Metropol muda drasticamente, inicialmente em tese para melhor e, depois, claramente para pior, Alexander também precisa aprender a adaptar-se e a viver uma vida inteira confinado em apenas um lugar. Ele começa como o “conde deposto” que se recusa a abaixar a cabeça, mas logo percebe que sua clausura é muito mais do que a grande maioria daqueles além das paredes do hotel têm em seu cotidiano. Seu primeiro despertar vem com a conexão inesperada que ele faz com Nina Kulikova que ele conhece quando menina e, depois, como adulta (Alexa Goodall e Leah Balmforth) e que ensina a ele muita coisa, inclusive a relação de dependência e confiança tão cara às fábulas e os vários caminhos pela infraestrutura do hotel que expande seus horizontes. Depois, vem o amor quase imediato pela bela atriz Anna Urbanova (Winstead) que, quando visita o hotel, sempre fica na enorme suíte de paredes verdes onde Rostov morava antes de sua prisão perpétua, com essa conexão despertando sentimentos que ele talvez não mais esperasse ter.

Mas Nina e Anna são apenas duas personagens – que, com Mishka, forma a trinca central coadjuvante – em uma constelação de outros, todos de origem “proletária”, com quem Rostov estabelece conexões, seja o barman, o chef, o gerente ou o concierge, não importa. Existe uma hierarquia entre eles? Sim e não é a resposta mais correta e também a mais fácil. Todos sabem que Alexander é, em essência, um prisioneiro, mas sua origem aristocrata nunca é esquecida, mesmo quando ele passa a ser garçom, empregando seu vasto conhecimento sobre vinhos para fazer os pareamentos e sugestões aos clientes. Mas nobreza não é apenas algo conectado com hierarquia, com ordens sendo obedecidas por subalternos. Nobreza pode ser de caráter, de intenções, de gestos e, nisso, Rostov e os demais ao seu redor convergem em uma espécie de conspiração impossível em que todos se ajudam, com a única exceção sendo o garçom (no início) Leplevsky (John Heffernan), o caricatural seguidor cego da doutrina do Politburo, sempre pronto a delatar, a criar obstáculos a todos, especialmente a Rostov, que ele vê como a personificação do “inimigo de estado”.

Se por vezes a minissérie ensaia descambar para o melodrama e, por outras, não resiste a alguns didatismos ou a repetições temáticas, a grande verdade é que Ewan McGregor – com adoráveis figurino, penteado e bigode de inspiração chaplinesca –  sustenta a história quase que completamente sozinho, ainda que valha destacar a presença magnética de Mary Elizabeth Winstead e outros do elenco que prefiro não indicar aqui para não enveredar pelo mundo dos spoilers. O ator, que parece ter se reencontrado na televisão, faz um irresistível protagonista que é um passageiro da História, um homem de quem tudo foi tirado, mas que, em seu exílio, ganhou muito mais do que jamais teve por apenas viver e usar de sua nobreza de espírito sua maior arma. Um Cavalheiro em Moscou é como um delicado presente de um ente querido que admiramos pelo gesto e pelas lembranças que ele traz à tona. Sem dúvida alguma, uma minissérie a ser degustada como um dos vinhos que Alexander tanto gosta de beber, mas também de servir e compartilhar.

Um Cavalheiro em Moscou (A Gentleman in Moscow – Reino Unido, de 29 de março a 17 de maio de 2024)
Desenvolvimento e showrunner: Ben Vanstone (baseado em romance de Amor Towles)
Direção: Sam Miller, Sarah O’Gorman
Roteiro: Ben Vanstone, Nessah Muthy
Elenco: Ewan McGregor, Mary Elizabeth Winstead, Fehinti Balogun, Daniel Cerqueria, Björn Hlynur Haraldsson, Johnny Harris, Leah Harvey, John Heffernan, Anastasia Hille, Lyès Salem, Leah Balmforth, Alexa Goodall, Penny Downie, Lily Newmark, Matilda Hunt, Dee Ahluwalia, Rob Jarvis, Charley Palmer Rothwell, Gabriel Robinson, Elliot Mugume, Mylo Rayne Pateman-Fannan, Jason Forbes, Beau Gadsdon, Billie Gadsdon, Anna Madeley
Duração: 383 min. (oito episódios)

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