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Crítica | Um Cara Quase Perfeito

por Leonardo Campos
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Escrever para alguns é uma tarefa terapêutica. Há várias “chaves” no campo da psicoterapia, oscilantes porque não determinam uma ciência exata e cada caso funciona de uma maneira diferente. Para muitos, a escrita é uma estratégia de ajuste para as necessidades de externalização de sensações, desejos, inquietudes, metas, objetivos, planejamento, emoções e outros tantos sentimentos humanos. Para ser considerada terapia, no entanto, há diretrizes, padrões, isto é, procedimentos não aleatórios que definem o caminho percorrido por quem determina este caminho como uma possibilidade de mudança. Sob a direção de Mike Binder, também responsável pelo roteiro e com um personagem relevante no setor dos coadjuvantes, o protagonista de Um Cara Quase Perfeito não segue os caminhos exatamente psicoterapêuticos tradicionais, mas um curso de escrita criativa para extravasar as suas ansiedades diante dos conflitos que não param de crescer em sua vida que era aparentemente perfeita. Uma mulher belíssima, um cargo de poder e os privilégios financeiros. Isso tudo é mesmo suficiente?

É como esse questionamento que o executivo Jack Giamoro (Ben Affleck) começa a guiar a sua vida. Ele não anda bem com a esposa, Nina (Rebeca Romijn), mulher que o traiu recentemente com um de seus melhores realizadores, o roteirista Phil Balow (Adam Goldberg). Não fosse apenas isso, ele ainda precisa cuidar do pai, Ben Giamoro (Howard Hesseman), idoso que depende de cuidados exclusivos e vive nas dependências da luxuosa casa de Jack, um empresário jovem que decide canalizar os estresses de sua vida luxuosa, envolta em prazeres materiais diversos, mas esvaziada de sentido. Ele guarda rancor de muitas situações do passado, apresentadas por meio de flashbacks orgânicos, bem editados, acontecimentos que estão constantemente em relação com o seu presente angustiante e em fase de remodelagem.

Para transformar a sua vida, Jack decide fazer um curso de escrita. O professor é o Dr. Primki (John Cleese), homem aparentemente charlatão, mas que possui algumas considerações relevantes para o personagem que busca a escrita como meio de canalização para os seus problemas. A tarefa durante o curso é a produção de um diário que será entregue ao professor no final do trajeto, como requisito avaliativo. As aulas são realizadas num auditório que nos faz lembrar o padrão dessas palestras realizadas por coachs que explicam o sentido da vida e demonstram como as pessoas podem ser felizes ou encontrar o sucesso, versão nebulosa da terapia tradicional focada na ciência. Nada contra as diversas formas que as pessoas encontraram para direcionar as necessidades terapêuticas de suas vidas.

O problema é a maneira banal como essas entidades parecem se aproveitar do sofrimento alheio para brincar de Deus com pessoas acossadas diante do desespero de uma existência que nos pede nervos de aço para enfrentar os obstáculos cotidianos. Mas sigamos. Lançado em 2006, o filme parece ironizar este segmento, ainda preambular, mais firme como mercado na última década. Jack Giamoro, sempre a ditar o destino profissional de muitas pessoas na escolha de roteiros que serão ou não executados, agora é traído pelas próprias escolhas, principalmente depois que Barbi Ling (Bai Ling), juntamente com o seu namorado, Jimmy Dooley (Sam Ball), rouba o seu diário durante uma invasão domiciliar, deixando Jack com feridas além do psicológico, numa transformação também física com direito a ida no dentista.

Agora, sob a forte pressão da chantagem, acompanharemos Jack na luta pelo resgate de seu diário, na continuidade das relações cotidianas de trabalho e no processo de autorreflexão acerca do seu casamento, fragilizado por sua própria postura egoísta que provia luxo para a companheira, mas não fornecia o básico para uma relação. É uma caminhada árdua de aprendizado, mas que o transforma e ilumina também a vida de outras pessoas que gravitam em torno das situações vivenciadas pelo executivo. Com um tom moralista de fábula, Um Cara Quase Perfeito é uma narrativa que nos deixa por um tempo sem saber se amamos ou odiamos. É uma experiência exagerada, com personagens coadjuvantes em atitudes excessivas, burlescas demais, algo que, no entanto, se justifica como ironia de uma fase absurda na vida de alguém.

Ben Affleck, entre o riso e o drama, expõe aos espectadores as suas mazelas por meio de um desempenho dramático conectado com o seu estado de espírito específico de cada cena. Se numa hora ele dá um show de histrionismo, com momentos absurdamente desequilibrados psicologicamente, noutros ele transmite a serenidade de alguém acalmado pela terapia da escrita que o faz expurgar o seu passado. Várias tomadas de efeitos visuais contemplam esse seu estado e vertigem diante dos acontecimentos inesperados da montanha-russa que é a sua vida. Circundante pelos sofisticados espaços erguidos pelo design de produção de Christian Wintter, ele e seu elenco são contemplados por outro setor também eficiente, a direção de fotografia de Russ T. Alsobrook, setor sábio ao aproximar e distanciar a câmera nos momentos certos.

Entre erros e acertos, excessos e momentos de contenção, Um Cara Quase Perfeito flerta com a metalinguagem nos esquemas que engendram a produção executiva no cinema e na televisão, muitas vezes responsável permitir que muita gente boa tenha o seu material esnobado para que outros nem tão bons assim ganhem projeção, dinheiro e prestígio social. É a máquina que rege as relações capitalistas também no campo da arte, mercantilizada, algo que já não é novidade para ninguém que é ou contempla como espectador, o mercado do entretenimento. Ademais, Jack Giamoro consegue finalizar o seu diário e até o entrega ao professor, mas antes de qualquer retorno sobre o seu desempenho, ele deixa claro para o mestre que já alcançou os objetivos almejados na empreitada que de várias formas, mudou a sua vida.

Pouco acima da média todos os aspectos, mas nunca medíocre, Um Cara Quase Perfeito deixa também a lição de mudança abrupta para algumas coisas mudarem de fato na vida das pessoas que passam por processos como os enfrentados por Jack Giamoro. Impotente diante do seu constante poderio divino determinador de destinos, ele acredita que largar tudo e recomeçar do zero é a única alternativa para sanar as crises e evita-las como retorno. É uma postura radical, mas que pode dar conta das suas necessidades dramáticas enquanto profissional jovem que acreditamos, ainda tenha tempo para resgatar outros valores e viver prazerosamente, sem a sensação de tempo esgotado, outras experiências. Por fim, deixo como destaque a ótima cena de um teste que reconstrói o famoso interrogatório com a personagem de Sharon Stone em Instinto Selvagem. Brynn Lilly (Amber Valletta) quer ser atriz e decide que a agência de Jack vai gerenciar a sua carreira. A passagem é divertida e põe em destaque uma das principais funções da linguagem do filme, a metalinguística, contemplada também em outros momentos.

Um Cara Quase Perfeito (Man About Town) – EUA, 2006.
Direção:  Mike Binder
Roteiro: Mike Binder
Elenco:Adam Goldberg, Amber Valletta, Ben Affleck, Gina Gershon, Jerry O’Connell, John Cleese, Kal Penn, Ling Bai, Mike Binder, Rebecca Romijn, Scott London
Duração: 96 min.

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