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Crítica | Um Cão Andaluz

por Ritter Fan
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Comecei e recomecei a redação dessa crítica várias vezes. Estava decidido a fazer algo objetivo. Afinal, o filme tem apenas 16 minutos, ou seja, é um curta-metragem. É uma questão de assistir e pronto, não? Mas aí eu parei e pensei: o que será que os leitores que não conhecem a primeira obra de Luis Buñuel vão pensar? Que ele é um maluco completo? Ou que sou eu o maluco completo? Então, depois de diversos falsos começos, decidi iniciar por uma experiência própria, que ilustra muita bem, eu acho, o que é Um Cão Andaluz. Sim, farei a crítica e, se você for impaciente, pule para o “capítulo” chamado “A Crítica” mais abaixo. Se, por outro lado, quiser algo mais contextualizado, leia tudo.

Em qualquer hipótese, sugiro fortemente que veja o curta antes e depois volte aqui. Não pelo riscos de haver spoilers em meus comentários, pois não há como fazer spoiler desse filme, mas sim porque, como o primeiro “capítulo” deixará claro e reiterarei ainda outras vezes, a experiência é tudo nesse caso.
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  • Vendo Um Cão Andaluz pelos olhos dos outros

Há poucos anos, tive a oportunidade de visitar o museu Reina Sofia em Madri, Espanha. Dentre as várias e sensacionais exposições que tive o prazer de ver, uma em particular me chamou a atenção: ao final de um corredor, em uma sala de bom tamanho, havia alguns quadros de Salvador Dalí, famoso pintor surrealista espanhol. Uma das obras expostas, porém, não era de artes plásticas, mas sim uma televisão passando Um Cão Andaluz em loop. Como já havia visto o filme algumas vezes, resolvi ficar parado, vendo a reação das pessoas. Fiz isso por meia hora logo quando cheguei e, depois, por mais meia hora antes de ir embora.

É fácil imaginar a quantidade e, principalmente, a diversidade de pessoas que parou diante do monitor para tentar entender o que se passava. Ficava claro, pelos comentários, que poucos sabiam que Um Cão Andaluz havia sido resultado de um trabalho em conjunto de Luis Buñuel e do próprio Dalí. Apenas aqueles mais curiosos procuravam ver a indicação de tal circunstância na parede, em letras pequenas, ao lado da TV. Mas o que mais me interessou e me cativou foram mesmo as reações espontâneas das pessoas que não faziam ideia do que estavam assistindo. Muitos tentavam discutir o significado de cada cena, da mesma maneira que nós tentamos discutir o significado de um quadro de Jackson Pollock. Alguns até estabeleciam umas conexões aqui e ali, mas ninguém simplesmente descartava o que estava vendo como loucura total.

Outros, mais pudicos, ficavam indignados pela nudez (o filme é de 1929!) e de uma certa violência. Outros, ainda, que começavam a assistir o filme efetivamente de seu começo, paravam imediatamente depois de verem, horrorizados, o corte do olho por uma navalha feito pelo próprio Buñuel em cena. Esses descartavam o filme como “nojento”, “de terror” ou coisas do gênero, pelo que dava para perceber pelos fragmentos audíveis dos diálogos travados a passos rápidos em direção à saída. Notei, também, tentativas  de emprestar significados religiosos ao filme, muito em virtude da cena do homem puxando as tábuas dos Dez Mandamentos, dois padres e dois pianos de calda com burros mortos em cima (sim, isso mesmo que vocês leram). As explicações eram as mais diversas: “o homem está tentando vencer a tentação”, “os pianos significam o peso da culpa cristã”, “os padres formam a consciência religiosa do homem”.

Alguns, provavelmente aqueles que já conheciam o curta, teciam comentários elogiosos aos efeitos especiais, especialmente ao corte do olho sobreposto à imagem de uma nuvem passando pela lua e às formigas saindo da mão do homem. O consenso era que, para 1929, esses efeitos são espetaculares. Como afirmei de outra forma no começo: Um Cão Andaluz é muito mais uma experiência sensorial quase única do que propriamente um filme. É um experimento de desconstrução narrativa que precisa ser visto e revisto e, sim, apreciado.
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  • Entendendo a gênese de Um Cão Andaluz

Fiz questão de salientar acima a busca pelo significado das imagens que são costuradas por Buñuel, exatamente porque o diretor e também Salvador Dalí queriam exatamente evitar isso. A história de como esse filme foi imaginado é muito peculiar e interessante.

Tudo começou quando Buñuel, egresso de sua “escola de cinema” como diretor-assistente de Jean Epstein, na França, sentou-se com seu então amigo Salvador Dalí (os dois brigariam feio não muito tempo depois e jamais voltariam a se falar) em um restaurante e conversaram sobre um sonho que Buñuel tivera sobre uma nuvem cortando a Lua como uma lâmina cortando um olho. Dalí, que em termos de bizarrices não fica atrás de Buñuel, respondeu que sonhara com uma mão da qual várias formigas sairiam. Buñuel, percebendo uma alma irmã em Dalí — em termos de imagens cinematográficas — pagou a conta e os dois partiram para bolar o roteiro do que viria a ser Um Cão Andaluz. Os dois se isolaram e estabeleceram uma única regra: “nenhuma ideia ou imagem que possa ter alguma explicação racional de qualquer tipo seria aceita”. Buñuel também foi claro quanto à sua intenção de que nada simbolizasse nada. Com isso em mente, os dois foram descartando ideias atrás de ideias ate que chegaram ao que, hoje, podemos assistir, embasbacados, em nossas televisões. O dinheiro para filmar veio da própria mãe de Buñuel, que era de família abastada.

Mesmo não sendo o primeiro surrealista, Buñuel tomou o mundo de assalto e é reconhecido dessa forma até hoje. O filme, quando foi mostrado pela primeira vez a um público seleto de autointitulados surrealistas, incluindo André Breton, fez com que Buñuel e Dalí – conforme diz a lenda – levassem pedras em seus bolsos para se defenderem de ataques vindos da audiência. O problema é que os espectadores adoraram o filme, o que acabou desapontando os dois criadores, que queriam chocar todo mundo. O próprio Breton acolheu os dois no movimento que liderava e o filme abriu as portas do cinema à Buñuel.

Um Cão Andaluz desfez as amarras à que o cinema estava sujeito e escancarou as possibilidades do meio. Muito argumentam que ele também foi o primeiro a demonstrar que um baixo orçamento pode gerar maravilhas desde que o dinheiro seja usado com criatividade, outros dizem que o filme é o antepassado dos clipes musicais. Outros, ainda, o consideram como o verdadeiro precursor dos filmes de terror modernos. Uma coisa é certa, porém: o Cinema (esse com C maiúsculo mesmo) não seria o mesmo hoje em dia não fosse a conversa de Buñuel com Dalí naquele restaurante, o dinheiro da mãe de Buñuel e sua perícia no comando da câmera, montagem (que ele fez na cozinha de sua casa, sem nem ajuda de uma Moviola) e efeitos especiais.
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  • A crítica

Um Cão Andaluz foi criado para servir de rompimento ao padrão cinematográfico então vigente – na verdade até hoje vigente – que determina, em linhas bem gerais, que tudo que está na tela deve fazer sentido (direto ou indireto), fazendo parte de uma narrativa coesa. Quando Luis Buñuel trabalhou com o polonês Jean Epstein em filmes como A Queda da Casa de Usher (1928), ele aprendeu a firme técnica imposta pelo diretor. Tudo era calculado. Tudo seguia um raciocínio. Apesar de dever muito a Epstein, Buñuel decidiu partir para a ruptura total, literalmente trazendo sonhos para as telas. E como sonhos não necessariamente têm estrutura formal — um começo, meio e fim — assim ele fez, junto com Salvador Dalí.

Se vocês, nesse momento, procuram algum tipo de sinopse da obra, podem esquecer. Trata-se de um curta-metragem de 16 minutos que é uma colagem de imagens tiradas de sonhos de Buñuel e Dalí, propositalmente sem significado. Vemos de um olho cortado por uma lâmina de barbear até formigas saindo da mão de um homem, passando por um ciclista caindo no chão sem maiores explicações, um homem puxando as tábuas dos Dez Mandamentos, dois padres e dois pianos de cauda com animais mortos em cima, além de uma mulher sendo apalpada, um passeio na praia, corpos enterrados na areia, tudo isso com uma trilha sonora (escolhida por Buñuel) composta de trechos de obras de Wagner e tangos argentinos.

Mas a necessidade humana de procurar significado em tudo é assombrosa. É quase impossível assistir a Um Cão Andaluz sem tentar ligar os pontos ou preencher as lacunas com alguma coisa que nos é familiar. Mesmo depois de ler a biografia do autor, que afirma com todas as letras que o objetivo foi extirpar do roteiro tudo aquilo que tivesse um semblante de significado, ainda sim eu procuro fazer as ligações. Afinal de contas, por exemplo, em determinado momento o homem quer matar a mulher, mas é impedido pelas tais cordas que contém os Dez Mandamentos. Um dos mandamentos qual é? Não matarás. E atrás das placas o que vem? Dois padres, meio que reiterando essa ideia. Mas há outras possibilidades e interpretações, especialmente porque estamos lidando com um filme que tenta reproduzir um ou vários sonhos, sem narrativa principal, a não ser uma caixa listrada – sem explicação – que conecta as várias sequências.

A experiência sensorial que Um Cão Andaluz proporciona é quase imbatível na história do cinema. O efeito do filme em cada um será muito pessoal. Uns ficarão frustrados com a bizarrice e maluquice aparentes, outros se divertirão com a profusão de imagens originais. Outros, ainda, não se contentarão e tentarão interpretar cada aspecto do que Buñuel colocou na tela. Pouco importa o efeito que o filme terá em cada um de nós. Uma coisa, porém, é muito certa e inegável: você não se esquecerá do que viu. E, eu garanto, são poucos filmes que entram para esse panteão dos verdadeiramente inesquecíveis.

  • Crítica originalmente publicada em 06 de janeiro de 2013. Revisada para republicação em 22/02/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.

Um Cão Andaluz (Un chien andalou) — França, 1929
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Luis Buñuel, Salvador Dalí
Elenco: Luis Buñuel, Simone Mareuil, Pierre Batcheff, Salvador Dalí, Robert Hommet, Marval, Fano Messan, Jaume Miravitlles
Duração: 16 min.

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