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Crítica | Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams

Uma obra-prima da dramaturgia escrita em 1947 e ainda muito atual em seus debates e situações.

por Leonardo Campos
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Uma obra-prima da dramaturgia do século XX. Assim é Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, composição teatral com diálogos afiados, conflitos desenvolvidos com coesão e personagens esféricos, construídos em suas complexidades, responsáveis pela força da peça ainda no contemporâneo. Concebido em 1947, o texto é marcado pela intersecção do realismo e do simbolismo, uma marca do autor, com seu estilo ousado e inovador. Ao longo de sua jornada, Williams construiu personagens complexos e conflitos emocionais intensos, a delinear constantemente a natureza ambígua e perturbadora da condição humana. O seu estilo não apenas conta uma história. Sua escrita meticulosa convida o espectador a habitar um mundo vibrante e multifacetado, onde as fronteiras entre o consciente e o inconsciente se dissolvem de maneira surpreendente, sem nunca cair no marasmo. A fusão inovadora de realismo e simbologia em suas peças estabeleceu um novo paradigma para a representação teatral, desafiando convenções tradicionais e abrindo novos horizontes criativos, deixando um legado importantíssimo, culturalmente impactante diante das suas ressonâncias para as gerações subsequentes de dramaturgos e diretores. A peça em questão, por exemplo, é referência para muitos artistas na posteridade, além de ter ganhado diversas traduções cinematográficas.

Estruturalmente, a peça começa com a chegada de Blanche DuBois a Nova Orleans, local onde pretende ficar com sua irmã Stella e o marido dela, Stanley Kowalski. Blanche, que aparenta refinamento e sofisticação, rapidamente se choca com a vida simples e dura de sua irmã e o comportamento rude de Stanley. Esses são mundos conflitantes, material dramático para muitas tensões. Ao longo do primeiro ato, nós acompanhamos Blanche e sua chegada sem aviso, tampouco muitos recursos materiais, alegando que a antiga mansão da família, Belle Reeve, foi perdida devido a dívidas. Desde o início, há uma tensão entre Blanche e Stanley. Ele desconfia das circunstâncias que envolvem a perda da propriedade da família, se apresentando como um homem cético diante das histórias e do comportamento de Blanche. É a base para o segundo ato, quando Blanche começa a mostrar sinais de instabilidade emocional e alcoolismo, concomitante ao ato de sedução diante de Mitch, um amigo de Stanley. Em seu mergulho repleto de projeções fantasiosas de cenários, a personagem parece ver nele uma possibilidade de escape e segurança. Mitch, conquistado pelos modos “refinados” de Blanche, desenvolve afeto por ela, até que Stanley começa a investigar o passado da personagem, tendo em vista desmascará-la.

O terceiro ato traz as revelações para turbinar o desfecho da peça. Stanley descobre e, logo depois, revela a verdade sobre Blanche, isto é, ela perdeu sua posição social devido a comportamentos moralmente questionáveis, tinha um caso com um jovem estudante em seu passado e foi expulsa de sua cidade natal. O confronto entre Stanley e Blanche culmina em um ataque brutal, onde Stanley estupra Blanche, intensificando seu declínio mental. É aqui que contemplamos com veemência uma observação que delineio constantemente nessa breve análise: a atualidade mordaz de Um Bonde Chamado Desejo. Na icônica cena final, Blanche é encontrada em um estado de completo colapso mental. Stella, incapaz de enfrentar a verdade sobre o comportamento de seu marido e a situação da irmã, escolhe acreditar na negação de Stanley e decide enviar Blanche para uma instituição psiquiátrica, absorta diante da redoma tóxica do esposo. Blanche, desorientada e desmoralizada, é levada embora, murmurando a emblemática frase “eu sempre dependi da bondade de estranhos”.

Dentre a pluralidade de temas debatidos pela peça, temos os conflitos de classes sociais, com a tensão entre a decadente elite sulista, representada por Blanche Dubois, e a classe trabalhadora de imigrantes, personificada na figura de Stanley Kowalski, o embate entre realidade e ilusão, diante da luta de Blanche para escapar da dura realidade por meio de ilusões e mentiras, mais uma vez contrastando com o realismo brutal de Stanley, uma mulher com fortes instabilidades psicológicas e transtornos de ordem mental, com a deterioração mental de Blanche ao longo da peça, explorando temas de trauma, culpa, e depressão. Um Bonde Chamado Desejo também versa sobre questões de gênero e poder ainda muito atuais, nas dinâmicas entre homens e mulheres, reforçadas nas ações e nas linhas de diálogos, em especial, nos momentos de exalação da masculinidade tóxica de Stanley, personagem que também evoca constantemente uma atmosfera de sexualidade como uma força destrutiva e ao mesmo tempo uma forma de escape e poder. Ademais, Blanche é pura potência dramática: a sua busca por segurança e proteção, bem como o seu medo profundo da solidão, algo que culmina em sua dependência diante dos outros, emocional e financeiramente, é algo muito intenso ao longo do texto.

Há, também, como força motriz da peça, as tensões culturais e étnicas manifestadas no casamento de Stella e Stanley, uma representação da diversidade e dos conflitos culturais na sociedade estadunidense pós-guerra, rotineiramente reflexiva em torno das questões sobre imigração e identidade cultural. Para quem sabe compor drama com eficiência, trabalhar tópicos sobre segredos do passado pode ser um caminho de elevada intensidade, como é o caso de Williams, um dramaturgo competente ao abordar a influência do passado nos personagens, como o histórico de Blanche com sua família e seu casamento fracassado, além da importância dos irmãos na formação da identidade, uma temática que poderia se tornar dispersiva ou mexicana demais na composição de um artista menos centrado e com pouco talento. A decadência sulista, ilustrada no declínio de seus valores e tradições, também se estabelece simbolizada pela situação de Blanche, fragilizada pela perda da propriedade Belle Reeve. Ademais, de volta ao icônico Stanley, temos nessa figura ficcional “brutamontes”, a presença constante da violência física e emocional, especialmente nas atitudes de Stanley e sua eventual agressão a Blanche, personagens demasiadamente conflituosos, por isso, clássicos e inesquecíveis.

Acessar Um Bonde Chamado Desejo é adentrar numa desconfortável, mas realista, zona de tensões sociais muito pertinentes para reflexão sobre o contemporâneo. Você, caro leitor, se considera preparado para a empreitada?

Um Bonde Chamado Desejo (A Streetcar Named Desire) — EUA, 1947
Autor: Tennessee Williams
Tradução: Vadim Nikitin
Editora: Peixoto Neto
272 páginas

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