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Crítica | Um Apólogo e O Espelho, de Machado de Assis

Machado brincando com os gêneros textuais.

por Davi Lima
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Apólogo

Último compilado dos contos de Machado de Assis que são publicados atualmente no livro A Cartomante e Outros Contos, reunindo outros textos como: A Causa SecretaPai Contra MãeO EnfermeiroConto de EscolaUmas Férias, O Caso da Vara, Noite de Almirante, Missa do Galo, A Igreja do Diabo A Cartomante. Ambos os contos, Um Apólogo e O Espelho, demonstram a versatilidade do autor brasileiro imprimir seu estilo único em meio a dinâmicas de gêneros textuais.

 

Um Apólogo

De todos os contos reunidos no livro A Cartomante e Outros Contos, esse é o único que foge do realismo machadiano. Não é para menos que o escritor tão objetivo em sua subjetividade coloque o diferencial da sua publicação original na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro já no título. Um Apólogo indica não apenas o gênero apólogo que vai ser tratado, mas também características dele, como a prosopopéia, indicando um comportamento humano do apólogo em se adaptar a circunstâncias diversas com o tal artigo indefinido “um”. A partir disso, duas vertentes precisam ser expostas para completar uma investigação desse conto: a estrutura do apólogo na visão machadiana e o contexto histórico invisibilizado pelo autor mediante o jornal fluminense.

Começando pelo desfecho do texto, pela moral da história dita pelo personagem alfinete – “Cansas-te [agulha] em abrir caminho para ela [linha] e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura.” – que caracteriza um texto apólogo, Machado de Assis não se contenta em manter a fantasia de personagens inanimados para comprovar uma fala pedagógica. Ele se coloca como personagem expondo a história a um chamado professor melancólico, remexendo a clássica objetividade moralizante do gênero discursivo. Assis coloca o traço realista/irônico em sua última linha: “Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!” como uma segunda moral, uma mais social política, espetando um contexto em que o texto se coloca.

Como foi dito, o título coloca o gênero textual como um comportamento indefinido, permitindo que não apenas a moral seja posta para outro contexto, que não apenas a mensagem direta ao leitor, incluindo um outro sujeito como o professor, como também vulcanizar, ou seja, intensificar algo relatado contextualmente no período em que Machado de Assis escreve. No Brasil, o Império comandado por D. Pedro II estava cada vez mais colocado contra a parede, sendo exposto como uma política de retrocesso pelos militares positivistas e republicanos. Como o apólogo remete à Corte imperial, citando o vestido da baronesa e a sensação de um projeto ser encaminhado para outro – como define o discurso direto entre a agulha e a linha – o acréscimo machadiano após a moral dita pelo alfinete, estático na discussão dos outros objetos, comenta “opiniosamente” sobre a política brasileira pela capa indefinida da invisibilidade chamada “apólogo”.

A perspicácia do autor brasileiro, assim, é tanto brincar com o gênero textual, funcionalizando seu propósito moralizante como método de aplicar seu estilo realista/irônico, como invisibilizar sua opinião política com classe. O alfinete, a linha e a agulha não recorrem necessariamente a uma metáfora política, como é de costume no recurso tanto da fábula quanto do apólogo para metaforizar e direcionar mensagens representativas. Machado de Assis é mais inteligente, criando a prosopopeia mais relevante quando torna o gênero textual, algo ainda mais inanimado, uma espécime em sua mente de escritor. “Um” apólogo é uma média facilitadora de comunicação, já Um Apólogo é um comentário sagaz, melancólico e invisível.

Várias Histórias (Brasil, 1896)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1885.
Edição lida para a crítica: A Cartomante e Outros Contos, editora Moderna, 3ª edição, 2013.
88 páginas

 

O Espelho

O Espelho é um conto exemplar da máxima irônica realista de Machado de Assis mediante a um gênero mais próximo da prosa fantástica. Um dos seus contos mais longos, a escrita é medida  entre dois universos: o do narrador Jacobina, que conta para os 4 homens numa casa em Santa Teresa, e a história dos 5 homens, incluindo Jacobina, que filosofavam sobre a alma, como uma boa aristocracia brasileira em ócio no verão fluminense.  Diante disso, a linha machadiana se fortifica, porque consegue imprimir seu estilo sagaz como princípio deslocado e fúlgido ao fim.

“Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação.” Assim, o conto se direciona sem muitas papas na língua uma alfinetada na atmosfera que inicia a história sombria que Machado descreve com a iluminação lunar e a conversa de 4 personagens sobre metafísica. Jacobina, o tal quinto personagem, é a ponte para a segunda camada de solenidade e ritmo para que o autor restabeleça um gancho ainda maior para seus apontamentos históricos e reflexivos em sarcasmo. Após duas pinceladas de ingenuidade de gênero textual, padroniza-se parágrafos grandes do narrador explicar sua experiência com seu esboço teórico sobre existir duas almas, sempre interrompido por algum colega.

Essas pausas são importantíssimas para medir uma linearidade nesse vai e volta de universos, preparando um final ainda mais acachapante quando se pensa em cortadas narrativas. “Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir… Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.” A cirurgia histórico social aplicada, envolta de uma dispersão anterior proposital sobre a a história da relação de Jacobina com o espelho, espelha movimentos políticos em voga no período de Machado, como escravizados fugirem do sítio e a farda de alferes se tornar um símbolo imperial isolado, sobrando apenas a bandeira em processo de se “republicanizar” 7 anos depois da publicação do O Espelho. Logo, a saída do quinto personagem antes mesmo dos colegas entenderem sua história, levemente anticlimática para expectativas metafísicas, coloca o deslocado como centro narrativo.

Entre as almas externas e internas que Jacobina define teoricamente, Machado de Assis faz uma espécie de metalinguagem no seu texto. As duas camadas de solenidade associadas ao gênero textual fantasioso e atmosférico engatam seu realismo, em suma. Utilizando o ritmo para suspense, pausas, repetições de mexidas do relógio, frases em inglês e francês, tudo cria a sensação de dispersão para um verdadeiro susto… que acontece ironicamente. O desinteressado dos colegas desenvolve um discurso que remete a si, uma alma externa desenvolta para atrair atenção sobre o tema metafísico e outra alma pronta para fugir desse tema – o sentimento risível machadiano, afinal.

Papéis Avulsos (Brasil, 1882)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1882.
Edição lida para a crítica: A Cartomante e Outros Contos, editora Moderna, 3ª edição, 2013.
88 páginas

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