A identidade da autora italiana por trás do pseudônimo Elena Ferrante permanece como um mistério cativante para o público, acrescentando uma dimensão toda especial às suas obras de cunho familiar, destacando o ponto de vista feminino para as mais diversas relações. Sua estreia aconteceu em 1991, com o romance Um Amor Incômodo (destaque para o duplo sentido do título original, L’Amore Molesto) e chamou a devida atenção do público e da crítica, ganhando, quatro anos depois, uma adaptação para o cinema, dirigida por Mario Martone. Neste seu primeiro livro, a autora já apresenta características que seriam recorrentes em produções posteriores, dentre as quais se destacam a narrativa em primeira pessoa e a desconfiança diante daquilo que é narrado.
Um Amor Incômodo apresenta uma narrativa que entrelaça uma jornada íntima com uma investigação indireta e singular sobre um óbito. Com o falecimento de sua mãe, Delia retorna à cidade de Nápoles, onde um emaranhado de memórias traumáticas ressurge e faz com que ela tenha comportamentos cada vez mais estranhos. A protagonista cuida de todo o processo burocrático para o enterro e segue para a casa da falecida mãe, com quem tinha uma relação no mínimo desafiadora. A escrita de Ferrante é suficientemente misteriosa para nos deixar tensos. Inicialmente, a impressão é que a obra irá seguir para um lado detetivesco, afinal de contas, o corpo de Amalia é encontrado no mar apenas com um caro sutiã sensual, algo muitíssimo inesperado para o porte socialmente recatado e com as módicas condições financeiras da mulher. Mas o texto, embora não abandone a aura de “investigação amadora de um suicídio que pode não ser um suicídio“, não perde tempo com isso. O foco da autora é dar espaço para a busca pessoal de Delia, para o enfrentamento de seus demônios, reencontros dolorosos e constatações inquietantes.
Por volta da metade do livro, comecei a ponderar sobre a similaridade da trama, especialmente em sua abordagem investigativa (no contexto de morte e de uma mulher envolvida com indivíduos estranhos e violentos), com os enredos dos gialli dos anos 60. A exceção é que no Universo de Ferrante, os personagens não estão encobrindo muitas coisas. Praticamente não há máscaras para cair, e isso me fez questionar a intensidade e mesmo a linha dos acontecimentos narrados por Delia. Todo mundo se comporta de forma abertamente abjeta, expondo sem reserva os preconceitos, machismos, violência física, verbal e mais uma série de outros comportamentos agressivos, tóxicos e invasivos. À medida que conhecemos essas pessoas — num fluxo de pensamento da narradora que mistura passado e presente — temos também alguns sonhos e alucinações que vão deixando o livro progressivamente confuso, distraindo o leitor. Esses dúbios caminhos oníricos nos afastam da ótima (e angustiante) realidade da personagem, muitas vezes interrompendo cenas de grande impacto psicológico.
Um Amor Incômodo não é um livro fácil de ser lido, tanto pelo estilo relativamente “experimental” da autora, quanto pelo conteúdo da obra. Os espancamentos das mulheres, os abusos sexuais e a maneira como as misérias das relações de uma sociedade são colocadas sem floreios torna o drama emocionalmente pesado, ganhando ainda uma camada considerável sobre a existência da protagonista, que precisa enfrentar muitos de seus traumas para, finalmente, cortar o cordão umbilical que a prendia à mãe e a tudo o que lhe feriu no passado. Apesar da organização narrativa confusa e desnecessariamente pontuada por distrações, a obra consegue trazer algo impactante e muito aberto para reflexões em nossa realidade. Não é uma estreia literária brilhante, mas é uma boa estreia, numa linha de procura que flerta com histórias de detetive, mas que pretende mesmo mostrar as tão recorrentes desgraças familiares que marcam, para toda a vida, crianças e adolescentes mundo afora.
Um Amor Incômodo (L’Amore Molesto) — Itália, 1992
Autora: Elena Ferrante
Editora original: Edizioni E/O
No Brasil: Editora Intrínseca, março de 2017
Tradução: Marcello Lino
180 páginas