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Crítica | Tudo Vai Ficar Bem (2024)

Se houver dinheiro em jogo, não tem família que salve.

por Ritter Fan
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O mais novo filme do diretor e roteirista de Hong Kong Ray Yeung aborda, em primeiro plano, a falsa aceitação da homossexualidade pela sociedade como um todo, usando um recorte ficcional da região onde vive para exemplificar sua crítica. Mas Tudo Vai Ficar Bem tem diversas outras camadas, uma delas, inclusive, de aplicação prática cotidiana que vale para todo mundo que tiver situação financeira um pouco melhor do que a média, quase que funcionando como aconselhamento sobre planejamento financeiro e sucessório para quem nunca sequer pensou em algo assim, o que é natural considerando que isso exige que a morte seja colocada em pauta.

No entanto, começando pelo que está em destaque no longa e que é, obviamente, seu objetivo principal, o que Yeung faz é lidar com um casal de mulheres homossexuais que vivem juntas há algo como quatro décadas, tendo conseguido, por meio de trabalho duro, uma vida confortável na terceira idade. Angie (Patra Au), mais doce, vive em perfeita harmonia com Pat (Maggie Li Lin Lin), mais pragmática, recebendo e ajudando suas respectivas famílias de níveis sociais claramente mais baixos e também suas amigas de uma comunidade florescente, mas “invisível”. No entanto, depois de um jantar comemorativo, Pat simplesmente vem a falecer silenciosamente em casa, em uma sequência discreta e muito bonita que sequer mostra a personagem, apenas Angie chamando-a da cozinha, o que muda completamente a dinâmica do longa.

Afinal, a relação de Pat e Angie é apenas tolerada em um país onde não há reconhecimento oficial da relação homossexual. A família, especialmente de Pat, sabe e aceita que as duas foram, para todos os efeitos práticos, casadas, gozando dos frutos financeiros das duas na forma de empréstimos e outras ajudas financeiras, mas, com a possibilidade de eles ficarem com a herança da falecida, alijando Angie quase que por completo, essa aceitação evapora e as décadas de vida a dois tornam-se décadas de “amizade”. Apesar de haver claras indicações de que o que o casal conseguiu de sucesso e dinheiro foi pelo esforço conjunto das duas, tudo está em nome de Pat, inclusive seu espaçoso – para os padrões de Hong Kong especialmente – apartamento, algo que é fortemente contrastado pelo apartamento minúsculo onde vive o irmão de Pat com sua família.

Sei lei para protegê-la, Angie vê sua vida ser virada de cabeça para baixo, algo que começa lentamente quando o desejo de Pat de ter suas cinzas jogadas no mar não é respeitado por seu irmão. Angie passa a ser sistematicamente varrida para debaixo do tapete, mesmo por aqueles membros da família que, percebendo o que está acontecendo, prometem ficar do lado dela quando a situação tornar-se séria. E é a partir do encurralamento de Angie que o filme, então, passa a ser bem mais universal do que algo focado exclusivamente em um casal homossexual.

Sim, a crítica do desamparo legislativo a relações homoafetivas está bem presente e bem trabalhada por Yeung, mas a grande verdade é que situações semelhantes acontecem no mundo todo com todo tipo de relacionamento que deixa cônjuge/parceiro sobrevivente tendo que lidar com uma herança cobiçada por todos ao seu redor. O dinheiro sempre falou e sempre falará mais alto, inclusive mais alto do que o próprio conceito de família. Pode não ser uma constatação bonita e pode não ser a realidade específica de algumas pessoas, mas, quando dinheiro está em jogo, todas as demais considerações costumam ficar em segundo plano. Não dizem que “amigos, amigos, negócios à parte”? Pois eu sempre – ou depois de perder a inocência pelo menos – achei essa expressão limitativa demais, já que o certo é “amigos, amigos, família, família, dinheiro bem protegido para não ter problema com amigos e família no futuro”.

Claro que a camada “extra” da relação homossexual coloca a situação em um grau acima, pois o que está em jogo não é “apenas” o dinheiro e bens, mas sim o próprio reconhecimento de que Angie e Pat eram quem eram. Há uma questão de identidade aí que aumenta a dor da perda para a metade sobrevivente do casal, dor essa que Angie sente profundamente em todos os seus aspectos, mas guarda para si mesma em uma atitude de docilidade e civilização que, confesso, fez meu sangue ferver, mas que Patra Au constrói com uma atuação excepcional em sua discrição sobrenatural e naturalidade zen. Mas, no frigir dos ovos, como o próprio filme deixa muito claro, considerando que Angie e Pat sempre souberam do não reconhecimento de sua união onde vivem, é a desídia e inércia das duas – especialmente de Pat, por ser, como disse, a mais prática e esperta para negócios como o roteiro faz questão de estabelecer diversas vezes – que leva à situação terrível de Angie. Como a advogada delas deixa bem claro, o casamento delas em outro país resolveria o problema, assim como a assinatura de um testamento que, aliás, estava pronto. Ou seja, se não se pode mudar o mundo e esperar atitudes decentes de todos, inclusive e especialmente de sua própria família, e, principalmente, se há dinheiro em jogo (e não precisa ser uma fortuna incalculável), o melhor que se tem a fazer é erigir muros altos ao seu redor para proteger a pessoa ou pessoas que se deseja proteger.

Então não, nada vai ficar bem, na verdade, se houver bens cobiçados por gente mesquinha (e essa é a regra se você não viver em um conto de fadas da Disney), e o ironicamente intitulado Tudo Vai Ficar Bem arranca o véu e revela a verdadeira natureza humana. Ray Yeung faz de seu filme um libelo contra o falso reconhecimento de relações homoafetivas e contra a falta de legislação equiparando-as às relações entre casais heterossexuais, mas ele vai além e também chama o espectador – qualquer espectador, homo, hétero, pan ou qualquer outra coisa – ao seu escritório de advocacia e sugere fortemente que o “papinho” seja transformado em “papelzinho” de forma a evitar (ou pelo menos minimizar) quaisquer dúvidas depois que a Inês literalmente tiver morrido.

Tudo Vai Ficar Bem ( Cóng Jīn Yǐhòu – Hong Kong/China, 2024)
Direção: Ray Yeung
Roteiro: Ray Yeung
Elenco: Patra Au, Maggie Li Lin Lin (Lin-Lin Li), Tai Bo, Leung Chung Hang, Fish Liew, Hui So Ying, Rachel Leung, Luna Shaw
Duração: 93 min.

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