Maio de 1968 usualmente é lembrado como um mês em que diversas greves e manifestações sociais ocorreram na França. Remanescentes de um acúmulo histórico que se dava até então – com a Guerra do Vietnã e a demanda pela ampliação dos direitos civis, dentre outros -, tais explosões reverberaram ao longo dos anos seguintes em várias instâncias da sociedade, especialmente em certa parcela da denominada intelectualidade. Ainda que alguns afirmem que as consequências são, às vezes, superestimadas, é inegável a influência que tal período acarretou em certa feitura do cinema europeu, especialmente o francês. Em 1967, Jean-Luc Godard lança um filme que é considerado sua última obra localizada no movimento da Nouvelle Vague, Week-end. Após isso, o cineasta seguiria notavelmente por uma fase denominada “militante”, com filmes abertamente marxistas e de teor revolucionário (tanto em seus discursos, quanto em suas feituras), através do recém-criado e maoísta Grupo Dziga Vertov, em parceria com Jean-Pierre Gorin. Em 1972, quatro anos após os fatídicos protestos que ainda ecoavam, Godard lança Tudo Vai Bem, trazendo para dentro da tela todo o amontoamento epistemológico resultante desse período. Eis, enfim, seu filme-motivo.
Godard nunca deixou de trabalhar com as experimentações provenientes de sua obra da Nouvelle Vague. Desde os primeiros cortes sobre a nuca de Jean Seberg, seu cinema sempre trabalhou com o estudo cada vez mais aprofundado dos desenlaces cinematográficos daquela opacidade. Em Tudo Vai Bem, o processo se repete, mas agora matizado também pelo teor político que tais experimentações reverberam e reforçam, especialmente através de certa lateralidade que implica o movimento totalizante. O grande mote técnico do filme é o travelling, mais de uma vez utilizado em cenas centrais do filme, em uma espécie de análise da potencialidade desmontadora do espaço cênica dessa técnica.
Curiosamente, o que conduz o andamento do longa-metragem é justamente a localização de um casal pequeno-burguês intelectualizado em meio às destruições das instituições sociais ao seu redor. E assim o filme se dá desde o começo: em uma narração metalinguística que remete a outras obras anteriores (como O Desprezo), coloca-se em cheque o elemento básico para a construção da narrativa fílmica. É necessário Ele (Yves Montand), é necessário Ela (Jane Fonda), é necessário ambos em meio a um cenário, em meio a uma localidade. Entretanto, evidenciar os aparatos técnicos circundantes da obra desde o início soa como uma linha fora da curva, no sentido de que desde os primeiros momentos o caráter de processo é imprimido na obra fílmica. O objeto que está sendo fabricado, em suma, está inserido em um processo produtivo, em uma indústria. Ou seja, desde o início, há uma certeza de que o aparato da ficcionalidade é potencializado pela capacidade de reverberar em seu próprio interior a discussão técnica que circunda sua feitura. Remetendo a Walter Benjamin, há instantaneamente uma consciência do cinema como uma arte tecnicizante, abstraída de aura. Essa, talvez, seja a primeira instituição a se desmontar.
E o movimento percorre o resto da obra. O casal pequeno-burguês se vê preso em uma greve onde os trabalhadores se radicalizaram e prenderam o patrão, ignorando o próprio sindicato. Em seguida, a esfera privada vem à tona na própria desmistificação daquela interioridade pessoal. Seus conflitos morais e relativos à convivência são evidenciados para demonstrar o questionamento de suas próprias posições como intelectuais em meio àquele momento histórico de rompimento de acúmulos. Ele se questiona abertamente, em dado momento, sobre sua posição, seu papel. E a narração de sua própria história apenas explicita o caráter falso que é atribuído a seu ser em meio aos ecos do momento. Por último, conflitos privados passados à esfera pública, a tensão eclode nas ruas e nos espaços de comércio. E novamente Godard e Gorin trazem para dentro da tela o travelling para tentar concatenar toda a realidade numa dimensão totalizante, numa apreensão ciente dos fatos.
É nessa dinâmica de contradições que o aspecto militante se expõe através da completa desordem caoticamente organizada. Desde a montagem daquela greve, com uma nova perspectiva de organização social no horizonte, até a bagunça explosiva que toma o ambiente do comércio privado do supermercado, tudo que existe em tela passa pela rigorosa mise-en-scène analítica dos diretores, em função de procurar constantemente montar e desmontar pontos de vista. Assim, não é de se surpreender que o espaço para o próprio outro narrativo seja concedido. Ouvimos o diretor da fábrica, ouvimos o representante do sindicato, ouvimos os intelectuais pequeno-burgueses e, majoritariamente, os trabalhadores. Todas essas outridades se digladiam em meio às movimentações dialéticas que imperam internamente no discurso da obra. À parte, o olho do cineasta habita supremo a perspectiva da captura, da ordenação e desorganização. Uma tentativa composta de várias tentativas.
Se Tudo Vai Bem é um filme que coloca em cheque desde os primeiros segundos sua própria condição fílmica de arte como produto industrial, como processo técnico, sua finalização se desencadeia como uma montagem de resultados. Tanto aquelas vidas privadas, quanto as organizações públicas que se dão no espaço interno da obra se finalizam, de certa forma. Partindo para o campo extra-fílmico, podemos entender a guinada insatisfeita e irônica do artista à radicalização ainda maior. No filme habita justamente todas as peripécias fruto dessa visão empolgada de ir ainda além, de maneira extremamente inteligente em sua formulação. Embora Godard e Gorin não trabalhem mais, nesse momento, sob o estigma do Grupo Dziga Vertov, seus ideais caminham juntos sobre a ideia de processo. Afinal, ambos têm consciência de que sua produção possui um local na cadeia produtiva. Uma obra reproduzida em 1972 é inevitavelmente condenada a adentrar esse espaço. Tudo Vai Bem se esforça, do início ao fim, para inevitavelmente demonstrar consciência disso tudo. Escapar, talvez, seja impossível. Mas enquanto isso, é permitido filmar.
Tout Va Bien – França, Itália, 1972
Direção: Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin
Roteiro: Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin
Elenco: Yves Montand, Jane Fonda, Vittorio Caprioli, Elizabeth Chauvin, Castel Casti, Éric Chartier, Yves Gabrielli, Anne Wiazemsky, Lous Bugette, Pierre Oudrey, Jean Pignol, Didier Gaudron
Duração: 95min