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Crítica | Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo

Nada importa.

por Kevin Rick
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Assim como em Um Cadáver para Sobreviver, os cineastas Dan Kwan e Daniel Scheinert, também conhecidos como “Daniels”, criam em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo uma alegoria cinematográfica para dramas humanos. Substituindo o defunto com habilidades especiais pelo multiverso em sua segunda colaboração em longas-metragens, a dupla de diretores nos apresenta a bizarra história de Evelyn Wang (Michelle Yeoh), a proprietária de uma lavanderia sob auditoria por conta de impostos. Tudo parece normal até que a personagem é visitada por outra versão de seu marido Waymond (Ke Huy Quan), que explica para ela os conceitos do alfaverso, onde humanos aprenderam a saltar para suas diferentes versões, e que todos esses universos estão sendo ameaçados pela vilã Jobu Tupaki.

Acreditem se quiser, mas noto semelhanças entre esta produção e Não Olhe Para Cima, com ambos os filmes explorando a tóxica relação da humanidade com a tecnologia nos dias atuais. Se Adam McKay assume a rota satírica da estupidez coletiva, os Daniels aderem ao surrealismo e ao drama como formas de representar ansiedades modernas. O número exaustivo de multiversos é basicamente uma metáfora para a quantidade excruciante de informações que recebemos no mundo virtual, muitas delas inúteis e na maior parte do tempo com uma absorção superficial e alienada que gera cansaços sociais e, ironicamente, falta de comunicação e conhecimento.

Até mesmo a forma como os personagens “entram” no alfaverso parece emular de modo exagerado os desafios estúpidos que vemos no Tik Tok, assim como a maioria das habilidades que os personagens ganham são similares aos posts e stories de talentos pouco valorizados ou simplesmente idiotas que vemos em redes sociais. São momentos que rendem cenas hilárias, trazendo um pouco de paródia à obra, mas é interessante como a comédia é apenas um meio de chegar em dramas contemporâneos mais profundos, desde nossa dificuldade de lidar com tanta gratificação instantânea e o mundo de aparências, até problemas crescentes como depressão e pensamentos suicidas.

Por isso, apesar de tanta bizarrice visual e metáforas sociais, o cerne do filme é extremamente pessoal, lidando com a relação conturbada entre Wang e sua filha Joy (Stephanie Hsu). Temos uma história sobre trauma geracional, algo bastante abordado em enredos com imigrantes asiáticos e sua cultura de pressão, mas que também lida com relações universais como maternidade e matrimônio. Só que, acima de tudo, o longa tem uma dramaturgia que explora a frustração de crescer, aquele sentimento de fracasso que toda pessoa já sentiu. É um roteiro cruelmente empático nesse sentido, com os Daniels até explorando algumas brincadeiras visuais sobre espelhamento (a cena inicial e as rachaduras em tela) que acenam para nossos pensamentos alternativos, a vontade de ter uma vida diferente e de mudar escolhas, fazendo um reflexo simbólico com o espectador.

Aliás, isso é trazido de forma metalinguística com a própria Michelle Yeoh, seu legado e sua carreira em filmes de artes marciais sendo discutida na narrativa, tanto em forma de homenagem quanto para demonstrar que a atriz não pertence apenas aos filmes de ação – é, sobretudo, uma história sobre nosso potencial. A artista é a âncora do longa, demonstrando ótimo timing cômico e ricas nuances de emoção humana. Yeoh é acompanhada por uma Hsu soberba na maneira que encapsula o sentimento “dormente” da nova geração, seja para o lado da ansiedade, seja para uma impressão geral de falsa indiferença, representando o “nada importa” de uma adolescência que tem acesso a tudo.

Interessante, então, que o roteiro leve essa afirmação para o lado filosófico, explorando o absurdismo e sua necessidade de dar significado à vida e aos nossos sentimentos (por isso os cineastas usam tanto caos visual e imagens simbólicas), também resvalando no existencialismo e caindo diretamente no niilismo. Todo esse ceticismo é confrontado pelo outro lado do espectro, da compaixão, empatia e gentileza, num discurso que não nega que “nada importa”, mas que mostra outra forma de enfrentar a vida, olhando com ternura para o lado mundano da existência, da beleza cotidiana e a harmonia que existe na simplicidade.

É uma catarse clichê? Extremamente, inclusive com alguns monólogos piegas e expositivos no ato final, mas mesmo nessas sequências mais cafonas, os atores entregam ótima sensibilidade e compreensão, conseguindo retratar o texto sentimental sem manipular o espectador. E para o mérito dos Daniels, em todo seu estilo sobre substância, os artistas conseguem desenvolver ótimos dramas familiares e conflitos intergeracionais num contexto absurdo, também impulsionando uma belíssima jornada interna de Evelyn sobre autoconhecimento e autoestima com tremenda criatividade visual, afinal, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é, também, um multiverso sobre o Cinema.

Os cineastas aproveitam a premissa de diferentes realidades e possíveis habilidades para se divertir com a abordagem cinematográfica da história, como dramas filosóficos sendo retratados com comédia (como a rosquinha do absurdismo) ou então as citadas metáforas visuais, como, por exemplo, os cortes frenéticos entre os universos que ajudam a enfatizar o conflito interno de Wang. Mas, acima de tudo, é uma produção sobre o Cinema de gênero, como as cenas de artes marciais filmadas como um grande balé em planos amplos, inspiradas nos clássicos longas wuxia, como O Tigre e o Dragão, ou na estética urbana e melancólica à la Wong Kar-Wai no segmento sobre uma tragédia romântica.

Não são, porém, referências pelas referências, com cada bloco trazendo algum tipo de significado e aprendizagem para a protagonista, como os combates e seu senso de força e confiança, ou então cenas surreais que nos ajudam a refletir sobre o silêncio da nossa existência (o fantástico segmento das rochas) e jogam luz sobre uma característica importantíssima em relacionamentos humanos: a atenção (o segmento enganosamente simples dos dedos de cachorro-quente). Passeando pela aventura, romance, ficção científica, e até inspirações em animes nos figurinos espalhafatosos da antagonista ou na estética de videoclipe de algumas cenas, temos uma produção encharcada de imaginação.

Interessante pontuar que o design de produção diversificado e o diretor de fotografia Larkin Seiple estão prontos para o desafio de multigêneros dos cineastas, canalizando cada universo com uma aparência distinta e senso de escopo único, assim como o ritmo vertiginoso do editor Paul Rogers combina com o diálogo frenético do roteiro – a trilha sonora eclética da obra também mantém tudo uniforme e atmosférico em suas diversas propostas. Confesso, porém, que num filme com tantos elementos, tanta confusão e transbordando tantas ideias, às vezes podemos chegar à exaustão. A minutagem certamente é exagerada, passando da conta em algumas cenas, como os momentos de artes marciais que são excessivamente longos, e também cansando o espectador nos seus vários (e desnecessários) monólogos que explicam a construção de mundo.

Afinal, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é puro caos narrativo, mergulhando no conceito de multiverso para abordar ansiedades modernas, diferentes gêneros do Cinema, camadas filosóficas e muitas emoções humanas, mas a obra é, acima de tudo, uma carta de amor à vida. Com tanta maluquice e bizarrice em tela, a mensagem que fica é a conciliação e a valorização da nossa pequenez frente à imensidão de questionamentos e possibilidades que é a existência.

Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All at Once) | EUA, 2022
Direção: Dan Kwan, Daniel Scheinert
Roteiro: Dan Kwan, Daniel Scheinert
Elenco: Michelle Yeoh, Stephanie Hsu, Ke Huy Quan, Jenny Slate, Harry Shum Jr., James Hong, Jamie Lee Curtis
Duração: 140 min.

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