Trinta Anos Esta Noite é um daqueles raros filmes que são produzidos para provocarem o extremo. Ele te dá poucas opções para além de: ou partilhar a experiência do protagonista, compreendendo o limbo temático proposto pelo cineasta, o que te leva a conferir à película um caráter de obra-prima, ou, na outra extremidade, facilmente este será um grande concorrente a ser um dos filmes mais enfadonhos que você já viu na vida. Não tiro em nada o mérito de quem não suporta nem ouvir falar dele, e entendendo que, muitas das vezes, ou é zero ou é dez.
Para mim, que tenho uma atração especial por personagens apáticos, este filme não consegue fugir do escopo de ser uma bela obra. Nem sempre é fácil construir um sujeito ficcional de personalidade impassível e indiferente, porque é sempre preciso forçar o enredo ao máximo, ao limite da desilusão, produzindo um efeito a partir disso – o que exige, sobretudo, técnica e sensibilidade. Neste sentido, todas as grandes características do gênero dramático de feição trágica estão contidas e muito bem trabalhadas no polêmico Le Feu Follet, o grande filme da carreira de Malle, ao lado de Adeus, Meninos.
O título é discutível e muita gente prefere o termo “Fogo-fátuo”, que é um fenômeno misterioso da natureza, que produz um fogo azulado, um fogo falso, em algumas superfícies mortas, como em campos lodosos ou cemitérios, e que logo desaparece sem deixar rastro. Certamente, a tradução literal do francês, “Fogo-fátuo”, representa a existência melancólica de Alain, mas gosto muito de toda a ideia de “Trinta Anos Esta Noite”, que também é uma designação grave, cheia de significados e soa bem aos ouvidos, além de representar a proposta fílmica, em que acompanhamos o personagem até o dia decisivo da sua vida, a noite dos trinta anos. No mesmo dia em que nasce, será o dia da sua partida. O título, que muitos não gostam, é uma escolha fina, pois dialoga com o fato do próprio enredo empurrar Alain para o desaparecimento completo justamente no dia do seu aniversário, que é, ao fundo, o dia mais importante do ponto de vista da existência, já que é a data em que tudo o que somos enquanto sujeito se concretiza. Os aniversários são um marco de tudo aquilo que somos, é a nossa marca de existência. E é neste dia que ele morre. A sombra enfim cai sobre o Ego.
Este filme compõe, além da aventura do cineasta por terrenos existencialistas, a chamada “fase francesa” da carreira do Malle, sendo ele mesmo muito influenciado pelo cinema do Bresson, sobretudo pelo Diário de um Pároco de Aldeia (1951), um dos filmes mais provocativos daqueles anos, que também influencia Bergman em seu desencantado Luz de Inverno (1963). Nesta mesma onda embarca Louis Malle com a produção de Le Feu Follet, narrando os últimos dias de Alain Leroy, o seu protagonista esvaziado de sentido e angustiado. A primeira cena na qual a câmera enfoca Alain deitado, cobrindo metade de seu rosto com o braço, deixando entrever apenas os seus dois olhos que lançam um olhar fulminante e indiferente em direção ao nada, me parece sintetizar a essência da caminhada deste personagem ao longo do filme, que conta a trajetória final de um homem que, morto por dentro, utiliza de seu exterior apenas para tentar retardar o inevitável.
A tematização do tédio neste filme é o que me permite reconhecer um grau de excelência no acabamento formal do longa-metragem, tendo em vista que imagem e som atuam juntos numa sinfonia melancólica, e a angústia de Alain é refletida em toda a unidade estilística do filme. O tédio, o chamado “l’ennui”, é um dos grandes temas franceses por excelência, que é manipulado com maestria por Malle na sua cenografia. A trilha sonora (as Gymnopédies, compostas por Erik Satie), que toca um piano com movimentos vagarosos e desorientados, sonoriza uma desesperança absurda, ecoando o próprio estado de alma do personagem. A trilha, ao fundo, desenha um quadro em cinza, como a representação de uma tarde de domingo muito tediosa, em que o enfado oprime toda a atmosfera do ambiente.
O argumento e o roteiro servem muito bem ao aspecto textual do filme, com grandes momentos e falas que marcam e intensificam a dor e o ressentimento de Alain, interpretado por Maurice Ronet, que tem um domínio completo do papel que lhe é dado, transparecendo brilho e verdade. Apesar de o personagem falar bastante, o silêncio tem um papel fundamental. Aqui existem verdadeiros “monólogos silenciosos”, como na cena do café, em que por longos minutos nada se fala, nem uma palavra, mas, ao mesmo tempo, já se diz absolutamente tudo. São quase três minutos de silêncio, em que o nosso herói emudece vendo a movimentação na rua, e é então que, depois de quatro anos sem beber uma gota de álcool por conta do problema com o alcoolismo, ele bebe pela primeira vez e tudo desmorona. É impactante o arranjo da mise-en-scène, causando uma completa compaixão descolorida, quer dizer, uma compaixão diante do sofrimento do protagonista. Uma das cenas mais densas e significativas na história do cinema. A mesma cena em Oslo, 31 de Agosto (2011), apesar de ser um ótimo filme, não consegue ter equivalência à obra de Malle.
Existe uma marca de época muito forte neste filme, que é o seu enquadramento nas ideias correntes da década de 60 francesa, e ele não consegue escapar disso, sendo um fruto do seu tempo e do seu meio. O filme conta ainda com a participação da ilustríssima Jeanne Moreau, uma das estrelas de Malle, cuja presença, mesmo breve, dá um respiro à película. Trinta Anos Esta Noite finaliza o enredo aniquilando a caminhada de Alain, eliminando-o por onde mais dói, segundo ele mesmo, que é o seu coração, local onde está adoecido. Ele não atira na cabeça nem na boca, mas no centro do seu coração, onde está a sua alma, que, naquele momento, já havia sucumbido espiritualmente, caindo dentro do seu próprio abismo.
Trinta Anos Esta Noite (Le Feu Follet, França, Itália, 1963)
Direção: Louis Malle
Roteiro: Louis Malle (baseado na obra de Pierre Drieu La Rochelle)
Elenco: Maurice Ronet, Léna Skerla, Yvonne Clech, Hubert Deschamps, Jean-Paul Moulinot, Mona Dol, Pierre Moncorbier, René Dupuy, Jeanne Moreau
Duração: 110 minutos.