Poucos documentários conseguem transformar uma narrativa política e histórica numa experiência imagética que seja, ao mesmo tempo, impactante, reflexiva e artisticamente aplaudível, como faz Trilha Sonora Para um Golpe de Estado. O filme possui uma montagem que desafia a linearidade clássica e se aproxima de um jazz visual, com o absurdo trabalho de Rik Chaubet funcionando como solo de improviso, repleto de dissonâncias, pausas rítmicas e fusões inesperadas entre imagens de arquivo, discursos políticos, apresentações musicais e registros caseiros ou de bastidores que revelam os meandros da Guerra Fria sob um prisma pouco explorado no cinema: o uso da cultura como instrumento de domínio geopolítico. O artista multimídia, curador e cineasta belga Johan Grimonprez nos conduz com um rigor investigativo impressionante por uma trama na qual jazz e descolonização se entrelaçam, expondo as contradições de um mundo que pregava liberdade, mas se sustentava na exploração brutal dos povos do sul global.
Desde os primeiros minutos, o filme faz o público mirar uma realidade muitas vezes obscurecida pela historiografia oficial e pela cinematografia. Os Estados Unidos da Guerra Fria, enquanto se vendiam como os paladinos da democracia e dos direitos humanos, orquestravam (juntamente com parceiros europeus) golpes, assassinatos e interferências que moldaram o destino de incontáveis nações terceiro-mundistas. O recorte escolhido pelo diretor, aqui, é emblemático: a ascensão e queda de Patrice Lumumba, primeiro-ministro congolês e símbolo da luta anticolonial, que se tornou alvo de uma conspiração internacional envolvendo a CIA (EUA), o MI6 (UK) e o governo belga. Mas o brilhantismo do filme não está apenas na exposição desses fatos, e sim na forma como a história é contada. De maneira dinâmica, o longa mescla registros políticos com a efervescência musical de nomes como Louis Armstrong, Nina Simone, Max Roach, Dizzy Gillespie e Abbey Lincoln, artistas que, muitas vezes involuntariamente, acabaram sendo utilizados como cavalos de Troia no tabuleiro de influência global americana.
A escolha do jazz como fio condutor em Trilha Sonora Para um Golpe de Estado é uma decisão narrativa que carrega imenso peso simbólico. O gênero representa tanto a expressão de liberdade quanto a luta de um povo contra a opressão histórica. Dessa forma, a obra cria uma justaposição fascinante entre os ideais de emancipação ressoantes na música e a maneira como essa arte foi cooptada por interesses imperialistas. Aqui vemos a diplomacia cultural como uma ferramenta de manipulação tão potente quanto as armas de fogo ou os embargos econômicos, algo que o mundo já conhecia desde o início dos anos 1930, com a política da boa vizinhança de Franklin D. Roosevelt. O resultado, no documentário, é um retrato angustiante da hipocrisia ocidental, onde o mesmo país que promovia turnês de jazz para disseminar sua influência, também apoiava ditaduras e lideranças que garantissem seu acesso irrestrito a recursos minerais e zonas estratégicas.
Outro aspecto que impressiona é o trabalho exaustivo de pesquisa, refletido na riqueza de material de arquivo utilizado, desde discursos inflamatórios na ONU (destaque para o trabalho até mesmo cômico em torno de Nikita Khrushchev) a interações diplomáticas caóticas dentro e fora da Assembleia. O filme escancara os jogos de cena que ocultam, sob a aparente formalidade institucional, uma brutalidade política que não hesita em esmagar qualquer tentativa de autodeterminação de nações antes vistas apenas como colônias lucrativas. O diretor nos coloca o contexto da política de não-alinhamento, a Conferência de Bandung e outros eventos no continente africano e na Ásia que demonstravam o período de descolonização se fortalecendo, a despeito da repressão que os decadentes impérios dominadores protagonizavam. A organização dessas imagens, ora sobrepostas a propagandas televisivas que vendiam um mundo ocidental preocupado com a liberdade, ora contrastadas com registros da miséria imposta a povos explorados, intensifica o impacto da narrativa sobre o espectador.
Se, por um lado, a excelente montagem contribui para a dinamicidade do longa, por outro, há uma sensação de leve cansaço próximo ao final. Essa pequena ressalva, no entanto, em nada diminui a força da fita, que se sustenta com um vigor impressionante e uma pertinência histórica que se conecta diretamente aos dias atuais. Ainda que os cenários e os protagonistas tenham mudado, os mecanismos de exploração e controle seguem tão ativos quanto na década de 1960. Os golpes de Estado, agora mais sofisticados, continuam a ser articulados sob o verniz da diplomacia, da espionagem e da imprensa, enquanto as grandes potências seguem ditando os rumos das nações subalternizadas, muitas vezes utilizando a cultura como uma ferramenta de distração e soft power.
Trilha Sonora Para um Golpe de Estado se estabelece como um manifesto político e artístico que expõe, sem concessões, as engrenagens de um sistema que sempre vendeu ilusões de progresso, enquanto perpetuava dominações estruturais que moldam nosso mundo até hoje. Johan Grimonprez guia esse imenso volume de informação sem jamais perder o controle da narrativa, tornando a obra uma experiência enriquecedora e transformadora. Se a história costuma ser contada pelos vencedores, este documentário é um raro exemplo de contra-narrativa que busca restituir vozes ou visões silenciadas, além de oferecer uma nova perspectiva sobre os eventos que redefiniram a política global no meio do século XX. Um filme essencial para todos que almejam enxergar com mais clareza os desafios do presente e as batalhas do futuro, nem sempre guiadas por um acorde agradável ou um improviso inspirador de jazz.
Trilha Sonora Para um Golpe de Estado (Soundtrack to a Coup d’Etat) — Bélgica, França, Países Baixos, 2024
Direção: Johan Grimonprez
Roteiro: Johan Grimonprez, Daan Milius
Elenco: Eva Gabor, Louis Armstrong, Malcolm X, Abbey Lincoln, Fidel Castro, Nina Simone, Ella Fitzgerald, Miles Davis, Duke Ellington, Dwight D. Eisenhower, Nikita Khrushchev, Dag Hammarskjöld, Patrice Lumumba, Mobutu Sese Seko, Leonid Brezhnev, John Coltrane, Andrée Blouin, Adlai Stevenson, Max Roach, Art Blakey, Gamal Abdel Nasser, Joseph Kasavubu, Ornette Coleman, Edward R. Murrow
Duração: 150 min.