Ron Howard é um dos melhores diretores inconstantes na ativa. Ele consegue acertar diversas vezes, como são os casos de cinebiografias como Apollo 13 – Do Desastre ao Triunfo, Uma Mente Brilhante, Frost/Nixon e Rush – No Limite da Emoção, mas também consegue errar feio quando envereda pelas ficções puras como no caso da Trilogia Robert Langdon. Mas ele é um cineasta de mão firme, que sabe guiar um filme, mesmo quando seu coração não parece verdadeiramente acompanhar seus comandos no set.
Treze Vidas: O Resgate é Howard mais uma vez retornando a uma cinebiografia – em seguida à fraca Era Uma Vez Um Sonho, de 2020 -, mas, desta vez, arriscando-se consideravelmente no formato escolhido. Afinal, filmes de ficção baseados em eventos reais que tentam seguir a estrutura de Cinéma Verité, ou seja, assemelhando-se a um documentário, costumam naufragar em um meio termo incômodo que não completamente realiza seu lado de ficção ou seu lado documental. O exemplo recente mais bem-sucedido nessa linha que consigo lembrar é A Hora Mais Escura, de Kathryn Bigelow, mas o longa de 2012 que chegou a concorrer ao Oscar de Melhor Filme tem Jessica Chastain como ponte com o espectador, facilitando a conexão e a empatia com o estilo.
No caso da história dos 12 meninos e seu treinador que ficaram presos no interior de uma caverna alagada na Tailândia em 2018, Ron Howard basicamente joga fora as regras do cinema estruturado que ele mesmo tão escrupulosamente segue quando mergulha em obras do gênero. Sim, ele usa atores conhecidos – notadamente Viggo Mortensen e Colin Farrell e, no terço final, Joel Edgerton – como fios condutores para criar familiaridade para os espectadores, mas a grande verdade é que mesmo eles vivem não-personagens, ou seja, “personagens” que são apenas aquilo que vemos em tela, ou seja, mergulhadores amadores britânicos especializados em mergulho em cavernas que se voluntariam para ajudar no resgate e acabam tendo papel fundamental na história. Eles dão vida a nomes reais relevantes na narrativa, mas seus personagens parecem não existir fora dessa definição, não havendo esforço algum do roteiro de William Nicholson ou da direção de Howard em dar-lhes mais camadas.
Mas eles não são os únicos não-personagens. As próprias crianças e seu treinador também são não-personagens. Seus pais igualmente, assim como as autoridades tailandesas e os voluntários que desviam o fluxo de milhões de litros de água que alagariam ainda mais as cavernas para campos de arroz, destruindo colheitas com a altruísta anuência dos próprios fazendeiros. A própria estruturação da narrativa, com idas e vindas das equipes de mergulho por horas a fio nos corredores alagados da caverna e discussões sobre estratégias e chances de salvamento das crianças parece mais aquela câmera de segurança afixada em lugar estratégico, com a filmagem resultante sendo inteligentemente usada no montagem do “documentário”.
E essas características de Treze Vidas: O Resgate, que poderiam facilmente fazer ruir o longa-metragem sob seu próprio peso, é o que o fazem funcionar de maneira quase inacreditável. E isso mesmo depois dos frenéticos 30 minutos iniciais que abordagem um grande número de dias do total da permanência dos garotos na caverna e que deixam o espectador se perguntando o que mais há para mostrar e ocupar de maneira relevante as quase duas horas que faltam? Claro que a história verdadeira em si – todos os sacrifícios feitos por milhares de pessoas – é inacreditável e é capaz de prender a atenção mesmo daqueles que, a priori, considerarem a duração da fita excessiva, mas a grande verdade é que Howard, ao defenestrar a estrutura básica de cinebiografias que normalmente apresentam um pouco da vida da vítimas e heróis para depois envolvê-los no imbróglio e, com isso, extrair o máximo de lágrimas possíveis quando a tragédia se abate, cria magia cinematográfica.
Ao se manter relativamente distante dos personagens, o cineasta cria angústia, faz nascer dúvidas, gera situações sem saída constantemente, e isso mesmo que o espectador se lembre dos detalhes do que realmente aconteceu (se você não se lembra, não pesquise antes, mas, se você por acaso se lembra, não se preocupe!). A claustrofobia daqueles homens já não tão novos assim usando seus próprios equipamentos para mergulhar por cinco, seis, sete horas seguidas ao longo de estreitos corredores submersos crivados de estalactites, além de correntes fortes e pedras prontas para desabar pelo peso da água, é esmagadora. O medo que eles e também os Navy SEALs tailandeses sentem a cada mergulho é palpável, assim como o puro heroísmo de todos ali, inclusive dos meninos e seu treinador que inacreditavelmente são achados vivos dias depois de ficarem presos diversos quilômetros da entrada da caverna.
Ainda que naturalmente muito do foco fique no assustador e lento resgate, gostei que o roteiro teve tempo de lidar com outras pessoas que influenciaram positivamente no resgate, notadamente, como mencionei, o grupo de voluntários que desvia o fluxo de água da montanha para o campo e os fazendeiros que abrem mão de sua colheita para permitir o escoamento da água. Novamente, a estrutura documental é bastante presente quando Howard pula de uma situação para outra sem que elas tenham conexão necessária e direta e isso pode incomodar quem não conseguir comprar a escolha do cineasta. Eu mesmo não sou o maior fã dessa mistura, mas, aqui, creio que Howard tenha encontrado o equilíbrio mágico necessário para lidar com tanta coisa ao mesmo tempo ao ponto de eu não conseguir imaginar como a estrutura usual poderia ter o mesmo efeito.
No entanto, sou o primeiro a reconhecer que é justamente por isso que Treze Vidas: O Resgate seja um pouco… frio ou, talvez, distante, possivelmente até sem coração em diversos momentos ao descartar o melodrama, arregaçar as mangas e tratar, sem firulas, das situações impossíveis e da forma como elas são desatadas. Como disse mais acima, é justamente pela obra ser povoada de não-personagens que muito da emoção depende exclusivamente da angustiante situação real em si, ainda que Howard se esmere em amplificar os sentimentos incômodos de claustrofobia e tensão sempre que pode. Fica até mesmo a impressão – possivelmente acertada – que Mortensen, Farrell e Edgerton foram dirigidos por Howard de forma a se manterem impassíveis pelo maior tempo possível, só “quebrando” em momentos-chave de tristeza ou triunfo, com Mortensen particularmente fazendo um trabalho difícil de ser a dura voz da verdade na base do “doa a quem doer”, sem papas na língua, que só contribui para gerar antipatia. Mas o conjunto, incrivelmente, funciona harmonicamente e faz dessa “ficção documental” um filme que sabe trabalhar bem esses dois aspectos antagônicos.
Treze Vidas: O Resgate é Ron Howard voltando à forma com um formato cinematográfico complexo e particularmente difícil de domar, mas que ele acaba tirando de letra por manter-se sem desvios ou concessões pela ousada estrada narrativa eleita para contar sua história. É sempre refrescante quando um cineasta evita os caminhos mais viajados e se arrisca com um gênero que lhe é familiar, mas que é executado de maneira inédita em sua carreira. Mesmo com suas inconstâncias, Howard mostra que ele ainda tem o que é necessário para emocionar e tensionar o espectador com impressionantes histórias reais.
Treze Vidas: O Resgate (Thirteen Lives – Reino Unido, 05 de agosto de 2022)
Direção: Ron Howard
Roteiro: William Nicholson (baseado em história de Don MacPherson e William Nicholson)
Elenco: Viggo Mortensen, Colin Farrell, Joel Edgerton, Tom Bateman, Sukollawat Kanarot, Thiraphat Sajakul, Sahajak Boonthanakit, Vithaya Pansringarm, Teeradon Supapunpinyo, Nophand Boonyai, Paul Gleeson, Lewis Fitz-Gerald, U Gambira
Duração: 147 min.