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Crítica | Treta – 1ª Temporada

Vários dias de fúria.

por Ritter Fan
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O conceito por trás de Treta poderia muito facilmente levar a um filme ou série completamente idiota, que basicamente se socorresse de exageros para chocar o espectador, esquecendo-se de, no processo, contar uma história interessante. Afinal, temos um homem e uma mulher que se envolvem em um daqueles incidentes no trânsito em que a raiva toma conta de qualquer semblante de racionalidade e, a partir daí, eles se tornam inimigos mortais em um ciranda interminável de vingança e retaliação. Se o criador da série, o coreano-americano Lee Sung Jin, quisesse, ele poderia partir desse ponto para transformar cada um dos episódios do que antes era um minissérie, mas que, com o sucesso, tornou-se uma série em formato de antologia, para criar uma sucessão de imaginativas formas de um personagem cometer violência no outro ao longo de todos os episódios, o que até poderia ser divertido, mas que, em última análise, não passaria de um exercício vazio.

E vazio é tudo o que Treta não é. Mas o melhor é que, no processo de criar algo mais apetitoso e recheado, Jin não deixou aqueles que querem apenas o que descrevi acima de mãos vazias. A escalada de violência entre Danny Cho (Steven Yeun), um humilde empreiteiro de ascendência coreana que luta para pagar as contas, e Amy Lau (Ali Wong), uma empresária bem sucedida de ascendência sino-vietnamita que está prestes a tornar-se milionária em razão da venda de seu negócio, é constante e ao mesmo tempo trágica, hilária e, dentro da proposta, supreendentemente verossimilhante, o que acaba criando uma base sólida para a verdadeira intenção do showrunner, que é oferecer uma obra de estudo de personagens que fala muito sobre ambições, sobre família, sobre herança cultural e, talvez mais do que tudo, sobre a vida, sobre aquilo que somos e que queremos ser.

A cada intensificação do embate, os roteiros de Treta fazem questão de paralelizá-los com as vidas particulares de cada um dos protagonistas, com seus problemas bem particulares. Danny precisa não só lidar com sua incapacidade de fazer seu negócio decolar de maneira a juntar dinheiro para comprar uma aparentemente impossível gleba de terra para construir uma casa para seus pais finalmente virem da Coréia do Sul para os EUA, como também precisa cuidar de um irmão mais novo que não parece estar muito disposto a contribuir com alguma coisa. Por seu turno, Amy demonstra-se ansiosa para vender seu negócio de plantas ornamentais para sua amiga bilionária, o que reflete na forma como ela trata seu marido artista – ou supostamente artista – que, em uma reversão da “norma”, fica em casa para cuidar da filha pequena do casal, o que também gera tensões. São problemas que, de uma forma ou de outra, parecem banais e cotidianos, mas é justamente por isso que eles são relacionáveis, extrapoláveis, de uma maneira ou de outra, para a banalidade e o cotidiano de todos nós.

O incidente inicial entre os dois, portanto, não é mais do que um estopim, um catalisador, um acelerador de problemas que, de alguma forma, aconteceriam mais para a frente nas vidas dos protagonistas. Jin cria a premissa que pode ter sido inspirada por filmes como o clássico Um Dia de Fúria ou o mais recente Fúria Incontrolável – além de diversos outros que gravitam menos diretamente por essa premissa, como Beleza Americana e até Taxi Driver – e a usa como pano de fundo, como artifício de conveniência para entrelaçar e destruir vidas e, no processo, fazer seus dois personagens centrais refletirem sobre si mesmos em uma longa e violenta sessão de terapia que, em meio a delírios e momentos de absoluta lucidez, mentiras e revelações, traições e arrependimentos, faz Danny e Amy perceberem quem exatamente são e, mais do que isso, porque são como são.

Mas Treta não seria o que acaba sendo sem a absoluta dedicação de Yeun e Wong a seus papeis. Por mais que eles vivam personagens detestáveis – mas eles são assim porque são muito parecidos conosco, temos que ser sinceros -, eles não são detestáveis absolutamente. Há uma infinidade de nuanças que os roteiros criam e que os atores, então, incorporam em olhares, trejeitos e solilóquios quase shakespeareanos. Pode ser que demoremos a entrar na proposta da série – eu sei que demorei – mas quando esse mergulho finalmente chega, ele é completo em razão dos dois, pela forma como eles fazem do exagero, do que poderia ser considerado até absurdo e impossível, algo que funciona, que exala legitimidade.

Sei que só elogiei a série até agora, mas ela tem um problema muito semelhante a tantas outras por aí: ela parece ter mais minutos do que são realmente necessários para contar a história, mesmo considerando tudo o que o diretor quis abordar. E não é nem o caso de dizer que ela poderia ter um ou dois episódios a menos, pois o que me pareceu é que Treta poderia – deveria! – ser tão somente um longa-metragem de algo como duas horas. O alongamento da narrativa com viagens para Las Vegas, entrada de parentes na história, a abordagem da vida bandida do primo de Danny e outros aspectos trabalhados com uma vagarosidade desnecessária tira o impacto da história e cria repetições temáticas que, no agregado, não acrescentam muito à temporada. Só não digo que a invasão da mansão nababesca da amiga bilionária de Amy não tem lugar na série, pois a sequência, em todo a sua pegada surreal, funciona como o ponto mais exagerado e satírico do gatilho narrativo da história e, portanto, merece o lugar de destaque que tem, mas, tirando isso, muita coisa poderia ter sido deixada de lado em prol da aceleração do coração da narrativa. Além disso, arriscaria dizer que faltou coragem da produção em ir até o fim de verdade nas consequências dos atos dos protagonistas, parando antes de realmente levar tudo às vias de fato, o que é típico de produções que almejam mais público e menos rejeição.

Seja como for, mesmo com seus problemas, Treta tem muito a oferecer. Apenas as performances de Ali Wong e Steve Yeun já vale o preço do ingresso, mas há mais, bem mais para ser apreciado nessa lenta implosão de vidas pela incapacidade de os protagonistas compreenderem suas falibilidades e o quanto suas decisões afetam aqueles que estão ao seu redor. Lee Sung Jin valorosamente resistiu à tentação de banalizar a premissa de sua série e acabou criando algo que realmente merece atenção (e, diria, um pouco de paciência).

Treta – 1ª Temporada (Beef – EUA, 06 de abril de 2023)
Criação: Lee Sung Jin
Direção: Hikari, Jake Schreier, Lee Sung Jin
Roteiro: Lee Sung Jin, Alice Ju, Carrie Kemper, Alex Russell, Marie Hanhnhon Nguyen, Niko Gutierrez-Kovner, Joanna Calo, Kevin Rosen, Jean Kyoung Frazier
Elenco: Steven Yeun, Ali Wong, Joseph Lee, Young Mazino, David Choe, Patti Yasutake, Maria Bello, Ashley Park, Mia Serafino, Remy Holt, Justin H. Min, Alyssa Gihee Kim, Andie Ju, Andrew Santino, Rek Lee
Duração: 348 min. (10 episódios)

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