Talvez seja uma maldade do crítico que escreve começar botando um grande peso nas costas de Três Verões, longa de Sandra Kogut, por conta de uma comparação que será feita a seguir. Que fique claro que ela não é no sentido qualitativo, mas apenas em um nível referencial, de aproximação temática e de foco da mise-en-scène. Pois bem, de certa forma, este filme brasileiro é como o vencedor do último Oscar, Parasita. Tanto o brasileiro quanto o sul-coreano exploram a ascensão da classe trabalhadora em um microcosmos — a casa em Angra dos Reis e a mansão Park — no qual espaço físico, anteriormente pertencente à classe mais rica, é agora reapropriado. Portanto, tratam-se de dois filmes nos quais seus gestos políticos estão principalmente na relação espacial entre os protagonistas e esses “estranhos habitats”. E não só isso, mas ambos também são menos sobre se tornar rico, mas fingir ser rico. Se apropriar destes costumes estranhos e fúteis momentaneamente porque o que importa são as aparências — algo que é muito bem destrinchado pelo crítico Arthur Tuoto em seu texto de Parasita.
Dividido em três atos definidos pela passagem temporal que dá o título ao filme — Dezembro de 2015, 2016 e 2017 — a trama acompanha a governanta Madá (Regina Casé), que trabalha em uma luxuosa mansão em Angra dos Reis para a família de Edgar (Otávio Muller) e Marta (Gisele Fróes). No primeiro ano, vemos a protagonista em suas funções domésticas e levando adiante o sonho de abrir um quiosque. Em seguida, Edgar é preso por corrupção, restando apenas os funcionários na casa, juntamente com seu idoso pai, Lira (um excelente Rogério Fróes). Já no último ato, ocorre a gravação de um comercial natalino na mansão, que estava sendo alugada como forma de gerar dinheiro.
É justamente no diálogo, seja através de paralelismos ou de contrastes, entre os “três verões” que está o grande trunfo de Kogut. Em um primeiro momento, existe o predomínio de cenas que ridicularizam os costumes da classe alta, através do ponto de vista de Madá, não pertencente àquele mundo. O choque em descobrir que objetos decorativos são caríssimos, o “susicha” (sushi de salsicha), o lamento pela “gringa” ser vegana, o power-point brega dos vinte anos de casamento. Aqui, a piada está menos associada aos hábitos por si só (afinal, veganismo não é “zoeira”), porém nesse estranhamento de hábitos que não se comunicam tão bem entre classes econômicas. A família rica do filme abraça todos os estereótipos, inclusive o do marido que trai. De igual modo, neste primeiro ato, faz-se questão de que a mansão esteja sempre lotada de convidados e o plano sempre ocupado por pessoas. Enquanto isso, os empregados estão relegados ao ambiente da cozinha. Já Madá, que precisa fazer a transição entre os dois mundos (a cozinha e a sala), sempre está desconfortável quando precisa “invadir o ambiente” festivo para falar alguma coisa com os patrões. A postura corporal de Casé indica desconforto, ela parece um peixe fora da água no meio do plano com aquelas pessoas e suas roupas de grife.
No segundo ato (2016), os espaços da mansão se tornam desocupados. Os planos agora são mais abertos, parece que aquilo que já era grande se torna maior. O patriarca da família fora preso e sua mulher com o filho fugiram para a Europa. Não interessa tanto ao roteiro a causa da prisão, uma sutil menção na TV de que há algo a ver com a Lava Jato já é o suficiente. Só sobraram Madá e os outros funcionários da casa, além do velho Lira. Chegou a hora da reapropriação e ocupação, de transformar o espaço inútil em útil. O champanhe é aberto na cozinha e não na sala, a piscina antes tomada pelos playboys agora é usada pelos funcionários, Madá assiste filme no sofá comendo pipoca e as mobílias “chiquérrimas” são vendidas em um leilão para os funcionários do condomínio. Eis o que seriam os momentos políticos de Três Verões, colocar as pessoas nesses espaços, tal como Parasita.
Contudo, nada disso não deixa de ser uma farsa, apenas uma imitação de comportamentos fúteis que os funcionários assistiam da cozinha e agora tinham a chance de reproduzir eles mesmos. Por isso, não deixa de ser muito interessante a escolha do roteiro em transformar o terceiro ato em uma literal metalinguagem dessa situação farsesca. Se em Parasita a catarse e a certeza de que as duas classes não dialogam surge através da violência, em Três Verões ela aparece pela potencialização do teatro. Agora toda a vida de glamour é uma mentira, os ricos são atores de um comercial, há um diretor dirigindo aquela cafonice. Em um momento de necessidade por falta de ator, Madá é chamada para interpretar uma madame. Obviamente, falha. Não consegue decorar a fala e nem agir naturalmente diante das câmeras. É tendo consciência de que está atuando que ela percebe que o que estava fazendo antes também era uma espécie de atuação. A ruptura do sonho então acontece no momento em que ela conta sua verdadeira história de vida, com todas as dificuldades que passou. Nesse momento a câmera do comercial se confunde com a câmera de Três Verões e Regina Casé se confunde com Madá. As fronteiras são rompidas.
No fim, por tudo isso que foi dito, é curioso que a cena final se passe justamente numa cozinha, mas desta vez no novo apartamento de Madá — herdado de Lira — em Copacabana. Lá estão elas e seus amigos, como antes, aglomerados, porém não mais como empregados, mas como pessoas “livres”. Em um filme de espaços, ocupações e ressignificações, a cozinha agora representa a concretização do sonho da casa própria.
Três Verões — Brasil, 2020
Direção: Sandra Kogut
Roteiro: Sandra Kogut, Iana Cossoy Paro
Elenco: Regina Casé, Rogério Fróes, Gisele Fróes, Alli Willow, Otávio Müller, Saulo Arcoverde, Edmilson Barros, Gustavo Machado, Ygor Manoel, Vilma Melo, Carolina Pismel
Duração: 94 min.