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Crítica | Transatlântico

Salvando vidas e manifestações artísticas.

por Ritter Fan
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Entre 1940 e 1941, logo depois da invasão da França pela Alemanha nazista e a instalação do Regime de Vichy, o então ainda incipiente Comitê de Resgate de Emergência, criado pelo jornalista americano Varian Fry em Marselha, importante cidade portuária no sul da França, foi responsável pela fuga de dois a quatro a mil judeus e antinazistas da Europa via Espanha e Portugal, em direção aos EUA, com diversos nomes importantíssimos da arte, literatura e pensamento ocidentais, como Max Ernst, André Breton e Hannah Arendt dentre eles. Transatlântico, baseado em romance histórico ficcional de Julie Orringer, publicado em 2019, é uma minissérie de coprodução alemã e francesa que procura contar essa pouco lembrada história, criando uma fascinante mistura entre abordagem histórica e artística em uma época assustadora.

Girando em torno principalmente de três personagens históricos, o referido Fry (Cory Michael Smith), a socialite e filha de magnata americano Mary Jayne Gold (Gillian Jacobs) e Albert Hirschman (Lucas Englander), a narrativa começa já em meio à história central, com a França sob o jugo nazista, mas com o arrocho de Vichy ainda não chegando com toda a força no sul do país, abrindo espaço, então, para que a combinação da insistência de Fry com a mistura de falta do que fazer, desafio ao pai que a quer de volta aos EUA e uma crescente visão humanitária de Gold e o heroísmo e coragem natos de Hirschman levar à criação do Comitê de Resgate de Emergência que, então, arregimenta a ajuda do diplomata Hiram “Harry” Bingham IV (Luke Thompson), filho de Hiram Bingham III, famoso por ter redescoberto a cidade inca de Machu Picchu, em 1911, para conseguir vistos aos refugiados que o grupo esconde em uma casa de campo nos arredores de Marselha.

Com o constante olhar reprovador de Graham Patterson (Corey Stoll), chefe de Harry que se interessa romanticamente por Gold e que defende que os EUA não devem entrar na guerra – a minissérie se situa no período anterior ao ataque a Pearl Harbor, ocorrido em dezembro de 1941 – e da polícia local, que simpatiza com os nazistas, mas não pode fazer nada na prática contra os americanos ali presentes, a narrativa desenvolve-se de maneira muito eficiente entre os aspectos citadinos da história que envolvem os referidos vistos, a criação de um caminho que, pelos Pireneus, leva os refugiados até a Espanha e, depois, Portugal, e outros elementos de um jogo político podre, mas inevitável, com a interferência da Inteligência Britânica e outras situações que Gold abraça de coração, sacrificando-se literalmente de corpo e alma e os aspectos artísticos, por assim dizer, na mansão de campo Villa Air-Bel inicialmente alugada por Thomas Lovegrove (Amit Rahav), ex-namorado de Fry, em que os refugiados se reúnem, criando uma espécie de ateliê criativo, em que eles tentam manter o semblante de suas vidas pré-nazistas.

É a forma como a minissérie equilibra história e arte que a realmente retira do lugar-comum. No ano seguinte ao lançamento da obra desenvolvida por Anna Winger e Daniel Hendler, Todd A. Kessler coincidentemente tentou fazer o mesmo com sua The New Look, mas com resultados muito inferiores. A dupla formada por Winger e Hendler efetivamente abraça espiritualmente a pegada surrealista de vários dos artistas “presos” na Villa Air-Bel para infectar toda a narrativa com uma pegada que, no agregado, é tensa, mas que, nos detalhes, tende a mostrar a resiliência humana e o quanto a arte sem freios é salvadora, o quanto o pensamento livre e desimpedido é libertador. É como um atestado não apenas da valentia e ousadia de algumas pessoas em lutar contra um regime opressivo e salvar vidas humanas, mas um libelo pró-arte como forma de abrir olhos e mentes, de trazer esclarecimentos e formas de expressão a pessoas que, de outra forma, seriam doutrinadas a escutar apenas um lado da conversa. Esse é, diria, o real valor de Transatlântico, algo que, de maneira diferente, mas igualmente importante pode ser constatado em Estação Onze.

Com uma eficiente reconstituição de época que faz uso generoso de filmagens em locação em Marselha e um elenco cativante nos arquétipos que muitos deles vivem – a milionária que muda sua visão de mundo, o homem gay que entende que está também lutando pelo direito de ele ser quem é e assim por diante -, Transatlântico funciona como lição de uma história pouco lembrada e de lembrete de que não se ganha luta alguma sem pelo menos tentar lutar. E, claro, há o poder curativo e edificante da criação artística e do pensamento artístico perpassando toda a cativante narrativa de heróis fazendo o pouco que podem para mitigar as perdas humanas.

Transatlântico (Transatlantic – Alemanha/França, 07 de abril de 2023)
Desenvolvimento: Anna Winger, Daniel Hendler (baseado em romance de Julie Orringer)
Direção: Stéphanie Chuat, Véronique Reymond, Mia Maariel Meyer
Roteiro: Anna Winger, Daniel Hendler, Steve Bailie, Isabel Teitler, Carey McKenzie, Tunde Aladese
Elenco: Gillian Jacobs, Lucas Englander, Cory Michael Smith, Ralph Amoussou, Deleila Piasko, Amit Rahav, Grégory Montel, Corey Stoll, Moritz Bleibtreu, Alexander Fehling, Louis-Do de Lencquesaing, Hande Kodja, Jonas Nay, Luke Thompson, Jodhi May, Rafaela Nicolay, Birane Ba, Henriette Confurius, Lolita Chammah, Yoli Fuller, Nadiv Molcho, Morgane Ferru, Alexa Karolinski, Hanno Koffler
Duração: 352 min. (sete episódios)

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