Continuações são costumeiramente problemáticas e inferiores à obra original. Segundas continuações, então, são normalmente dignas de descaso total. Claro que há grandes exemplos de trilogias irretocáveis, mas elas são as exceções que confirmam a regra. No caso da Pixar, sempre pautada pela originalidade de seus roteiros, as continuações podem ser vistas como males necessários para criar caixa para bancar o risco de novas aventuras com personagens desconhecidos.
Ainda que a empresa tenha talvez caminhado perigosamente para o exagero das sequências, algo que ela não se verá livre tão cedo, é senso comum que sua Trilogia Toy Story está acima de qualquer suspeita. E efetivamente está, ainda que este crítico, pessoalmente, sempre – SEMPRE – prefira filmes originais a continuações, reboots e coisas do gênero (ver o novo – ruim ou bom – torna tudo menos previsível e, consequentemente, mais interessante), pois não há dúvidas que o trabalho da produtora com seus famosos e amados brinquedos que ganham vida quando os humanos não estão por perto é de fato impressionante. Apesar de Toy Story 2 carregar consigo o ônus de ser comparado com o original e, com isso, acabar sendo levemente inferior (outra coisa rara, afinal, é ver continuações melhores que os originais), fato é que o longa que quase foi lançado direto em vídeo não desapontou. Assim, uma segunda continuação era apenas questão de tempo e ela acabou vindo mais de 10 anos depois, após a aquisição da Pixar pela Disney e a decisão da Casa do Camundongo em apostar primeiro no certo, depois no duvidoso, especialmente considerando a análise de que a animação anterior, Up – Altas Aventuras, apesar do sucesso de crítica, ficou abaixo do esperado na bilheteria e foi considerado pelo marketing da empresa como pouco “vendável”.
Toy Story 3 abre com um flashback de Andy brincando com seus adorados brinquedos, uma espécie de filme dentro do filme, que transforma aquela cena inicial do primeiro Toy Story, quando efetivamente vemos o menino brincando com seus brinquedos, em uma aventura de Woody (Tom Hanks) e Buzz (Tim Allen) contra os “malvados” Sr. e Sra. Cabeça de Batata (Don Rickles e Estelle Harris, respectivamente). Encerrada essa sensacional abertura, percebemos que Andy (John Morris) cresceu e seus brinquedos foram colocados em um baú (o mesmo baú carroça da primeira animação, o que demonstra o cuidado e carinho da produção com seu legado). Andy está prestes a ir para a faculdade e precisa decidir o que fazer com seus brinquedos: doá-los para uma creche ou guardá-los no sótão.
Depois de um descuido, todos os brinquedos acabam no orfanato e nas mãos de crianças pequenas demais que abusam (no bom sentido) deles. Uma boa parte do filme se passa dentro desse orfanato e lá somos apresentados a diversos novos personagens, como o metrossexual Ken (o eterno namorado fashion da Barbie, com a excelente e improvável voz de Michael Keaton), o urso rosa Lotso (Ned Beatty), o telefone com rosto (que eu tive quando criança!) chamado Chatter (Teddy Newton) e o robô Sparks (Jan Robson), aquele que soltava faísca do peito (que eu também tive!). A interação dos conhecidos brinquedos com os novos evoca uma multitude de filmes de máfia e gangsteres, em que o inocente acaba inadvertidamente sendo jogado em uma estrutura viciada e perigosa, com hierarquia de comando pré-definida.
Sem entregar muitas surpresas, para quem porventura ainda não tenha visto essa maravilha, vale chamar atenção para duas transformações: a de Buzz em um caliente amante espanhol (Javier Fernández-Penã substitui magistralmente Tim Allen nesses momentos), que é de chorar de rir e a do Sr. Cabeça de Batata em Sr. Cabeça de Tortilha. São dois momentos que, sozinhos, já valem o preço do ingresso.
Mas o que realmente diferencia essa terceira parte das outras é que John Lasseter (criador da história, que ganhou roteiro de Michael Arndt) trouxe Andy para o meio como personagem essencial, não apenas um acessório visto ao longe. É a primeira vez que um humano ganha papel de destaque na franquia e ele não está sozinho, pois somos apresentados a Bonnie (Emily Hahn), que logo identificamos como a sucessora do rapaz. Lá no epílogo, a interação dos dois é tocante e pode levar um adulto às lágrimas pela beleza intrínseca do momento e também por um efeito nostálgico difícil de explicar. Uma joia considerando, afinal de contas, que se trata de uma segunda continuação.
No entanto, Toy Story 3 não consegue fugir completamente da fórmula estabelecida pelo filme original e acaba requentando personagens e situações. É o ônus talvez natural de uma sequência que talvez sinta até a obrigação de repisas determinada estrutura que já cativou o público. Reparem como, por exemplo, seu roteiro é repetitivo: há a fuga de Woody da creche, depois a fuga dos demais da creche e, em seguida, eis que testemunhamos – sim, você adivinhou! – a fuga de todos juntos do ferro velho. Fuga, fuga, fuga, em cadência semelhante às dos filmes anteriores, sem realmente, para os padrões Pixar, inovar. Além disso, o roteiro flerta perigosamente com o sentimentalismo exacerbado, quase maniqueísta, que dita o que o espectador deve sentir-se, sem qualquer semblante de sutileza. Sei que aqui navego contra a corrente, mas o momento “mãos dadas”, ainda que seja bonito, é manipulador demais e dá a entender um fim que simplesmente não aconteceria, logo de cara quebrando eventual tensão do momento.
Acontece que, entre novos personagens – Bonnie e os brinquedos sob o comando de Lotso – e a interação entre eles e a gangue de Woody e Buzz, além de um CGI apuradíssimo e de se tirar o chapéu, com texturas e cores de hipnotizar o espectador, Toy Story 3 consegue se situar poucos degraus acima do segundo filme, uma façanha que por si só já merece aplausos. Não é todo dia que um estúdio consegue revitalizar sua franquia ao ponto de catapultá-la ao “clube do bilhão”, especialmente considerando-se o tempo passado entre um filme e outro.
Claro que esses números foram ajudados pelo fato de Toy Story 3, assim como Up – Altas Aventuras, ter sido filmado em 3D nativo. No entanto, diferentemente de Up, que tem cenas aéreas que fazem valer a tecnologia, mas sem depender dela, o 3D em Toy Story 3 cai na categoria do “não ajuda, mas também não atrapalha”. Como a Pixar (ainda) não faz um uso rasteiro da tecnologia com “cuspes e vômitos na cara”, o resultado final é, porém, satisfatório.
Continuações podem ser desnecessárias e muitas vezes até perniciosas, mas preguiça não parece ser a palavra de ordem na Pixar, que consegue o mérito de criar uma trilogia próxima da perfeição. É, realmente, uma franquia que vai ao infinito e além.
- Crítica originalmente publicada no ex-blog pessoal do crítico em 17 de julho de 2010 e alterada radicalmente e republicada em 09 de novembro de 2015 já no Plano Crítico.
Toy Story 3 (Idem, EUA – 2010)
Direção: Lee Unkrich
Roteiro: Michael Arndt (baseado em história de John Lasseter)
Elenco: Tom Hanks, Tim Allen, Joan Cusack, Ned Beatty, Don Rickles, Michael Keaton, Wallace Shawn, John Ratzenberger, Estelle Harris, John Morris, Jodi Benson, Emily Hahn, Laurie Metcalf, Blake Clark, Teddy Newton, Bud Luckey, Bea Miller, Javier Fernández-Penã, Timothy Dalton, Lori Alan, Jan Robson
Duração: 103 min.