A minissérie original Top of the Lake, de 2013, trazia uma jornada auto-contida de crescimento e amadurecimento de sua protagonista, a policial Robin Griffin (Elisabeth Moss), de férias na Nova Zelândia, que esconde um passado tenebroso e complexo. Lidando com o caso do desaparecimento de uma menina, a pegada quase metafísica de Jane Campion e Gerard Lee sem dúvida alguma trouxe algo especial para a televisão, merecendo comendas de ponta-a-ponta.
Mesmo inexigindo continuação, Top of the Lake volta quatro anos mais tarde, com o subtítulo China Girl em que Griffin lidera a investigação sobre o assassinato de uma jovem asiática achada dentro de uma mala na praia Bondi, em Sydney, Austrália. Novamente, o caso policial em si é apenas um trampolim para lidar com os aspectos psicológicos da protagonista, estuprada quando muito jovem e engravidando a partir deste terrível ato de violência e, ato contínuo, entregando sua filha para adoção. Além disso, ela sofre o preconceito dos homens não só pelo simples fato de ser mulher, como, também, por ter atirado em Al Parker (David Wenham), o detetive criminoso da primeira minissérie que faz uma ponta aqui para fechar de forma esquisita e deslocada essa parte da história. Por outro lado, ela tem a admiração incontida da policial Miranda Hilmarson (Gwendoline Christie), com quem seu chefe a obriga a formar uma hesitante parceria.
Antes de mergulhar na análise da série em si, cabe um parênteses. É muito interessante ver como Elisabeth Moss vem se firmando como um importante símbolo da luta pela igualdade de gêneros e da denúncia da misoginia, desde que despontou com seu icônico papel de Peggy Olson na magnífica série Mad Men, passando por, claro, Top of the Lake e, recentemente, The Handmaid’s Tale. Dona de um tipo físico que foge do padrão “modelo-manequim” de muitas atrizes de enorme destaque, Moss vem demonstrando grande talento em criar personagens complexas, introspectivas e fortes, sem que ela precise demonstrar isso por intermédio de sequências de ação vazias ou mesmo diálogos expositivos. Ao contrário, ela consegue mais do que muitas atrizes contemporâneas, encarnar o conceito de “mulher comum”, alguém que consegue quebrar a barreira empática com os espectadores mais facilmente.
Sua atuação em China Girl, assim como em seus trabalhos citados, é firme e certeira. A cada avanço indevido de um dos policiais com quem tem que trabalhar, vemos em seu rosto o mais completo desgosto, irritação e desconforto, imediatamente trazendo à tona o histórico de seu personagem apenas com olhares e linguagem corporal, sem recorrer a momentos artificiais que quebrariam a imersão necessária. Nesse quesito, a continuação de Top of the Lake sem dúvida merece toda nossa atenção.
Mas, infelizmente, a atuação de Moss, sozinha, não cura os problemas de China Girl, uma minissérie eivada de vícios narrativos incomuns para Campion e Lee que acabam tornando-a conveniente demais, rasteira demais, ferindo de morte o espírito do nome Top of the Lake. É como se os roteiristas não tivessem conseguindo encontrar uma maneira de naturalmente casar o caso policial que está na superfície com os dramas de seus personagens sem misturar completamente as narrativas ao ponto de torná-las uma coisa só, mas sem qualquer organicidade ou até mesmo identidade.
Quando o legista descobre que a vítima estava grávida, o caso toma outros contornos e Robin, sempre acompanhada de Miranda, passam a lidar com a possibilidade de uma rede ilegal de comércio de barrigas de aluguel tendo prostitutas asiáticas que entram no país com vistos de estudante como pivôs. Nesse submundo, logo conhecemos Alexander “Puss” Braun, um alemão asqueroso vivido por David Dencik, que é o típico intelectual anárquico que esnoba a “burguesia” ao mesmo tempo em que manobra e explora as mulheres no bordel Silk 41 com seu carisma inexplicável.
O grande problema é que Alexander é o namorado muito mais velho de Mary (Alice Englert), a filha de 17 anos de ninguém menos do que a própria Robin, com quem ela coincidentemente tenta atar laços no começo da minissérie ao finalmente responder uma carta da jovem enviada há alguns anos, carta esta interceptada pelos pais adotivos Pyke (Ewen Leslie) e Julia Edwards (Nicole Kidman). A coincidência é gritante demais e, em última análise, completamente desnecessária, já que a reunião do caso policial com a vida privada da policial poderia se dar de várias outras maneiras que não fosse a completa fusão de linhas narrativas que acaba exigindo demais do espectador em termos de suspensão de descrença.
E, como se isso não bastasse, a gravidez de Miranda – que, confesso, demorei a perceber – também acaba tendo relação direta com todo o mercado de barrigas de aluguel, em uma processo de “cachorro correndo atrás do rabo” que faz com que toda a história perca sua vivacidade e progressão natural. Nesse processo, os papeis de Kidman e de Leslie são desperdiçados e o de Christie é, praticamente – e mais uma vez, se lembrarmos de Game of Thrones – algo intrinsecamente ligado à fisicalidade da atriz, o que ancora sua personagem quase que a um arquétipo. Falando em arquétipos, a própria variedade de orientações sexuais tão bem trabalhada na primeira minissérie parece ser marretada em China Girl, como uma criança que tenta encaixar um círculo em um quadrado e, quando não consegue, joga a peça longe.
Mesmo que o espectador consiga passar por cima de todos esses problemas, existe outro que certamente o enervará: a forma como todos tratam Mary. Caracterizada como uma adolescente inteligente, mas com problemas de relacionamento com seus pais adotivos e facilmente influenciável pelo execrável Puss, com quem tem um doentio relacionamento de dependência que a leva à completa desgraça, a jovem passa incólume diante de todos, seja Pyke e Julia, próximos do divórcio ou até mesmo Robin, semi-acolhida nesse seio familiar fragmentado.
Na medida em que o comportamento da jovem piora, conforme a manipulação pseudo-intelectual de Puss e na medida em que Robin vai descobrindo a ligação do alemão com o tráfico de barrigas de aluguel, pinta-se um quadro desastroso para Mary que ninguém – e eu repito, ninguém – sequer esboça alguma reação efetiva em contrário. Mesmo quando Pyke esboça um confronto, ele é pálido e mal-construído na narrativa, com se a informação sobre Puss tivesse magicamente caído em seu colo. Robin, policial e mãe biológica da garota, parece tão completamente inebriada pela sua recém-descoberta e benquista maternidade que nem sequer levanta a voz seja para Mary, seja para Puss. É como se uma redoma de conto de fadas tivesse sido construído em volta da jovem que não permite que ela seja tocada ou contraditada em uma progressão cambaleante de um roteiro já muito mal costurado.
China Girl é uma continuação desnecessária e fraquíssima de uma excelente minissérie. Não fosse mais uma vez Elisabeth Moss mostrando sua latitude dramática, a volta a esse universo seria completamente vazia e, pior, atabalhoada e nada inspirada. Teria sido muito melhor que Top of the Lake continuasse como uma história auto-contida.
Top of the Lake: Chinal Girl (Austrália, 27 de julho a 31 de agosto de 2017)
Criação: Jane Campion, Gerard Lee
Direção: Jane Campion, Ariel Kleiman
Roteiro: Jane Campion, Gerard Lee
Elenco: Elisabeth Moss, Gwendoline Christie, David Dencik, Alice Englert, Ewen Leslie, Nicole Kidman, David Wenham
Duração: 366 min. (seis episódios no total)