Não é incomum encontrar nas obras do cineasta dono de Asas do Desejo longas que sejam autorreferenciais, cuja matéria fílmica pauta-se numa metalinguagem em que o argumento concentra-se em falar acerca do próprio cinema. Refletir sobre a imagem, som, direção, películas, tipos de câmera, entre outros aspectos compositivos, faz de Wim Wenders mais do que um diretor, o transforma em cinéfilo. Tá aí um homem que, como poucos, é apaixonado pela arte de representar a realidade através da imagem. Tokyo-Ga é um dos exemplos disso.
Na metade dos anos 70, Wenders achava que conhecia a história do cinema, afinal, segundo ele mesmo, via centenas de filmes de uma só vez. Numa de suas viagens de Paris a Nova Iorque, num desses eventos corriqueiros abertos ao público, um rapaz o diz: “Você precisa conhecer esse cineasta!”. Ele nunca tinha ouvido falar de Yasujiro Ozu, mas ficou obcecado e viu tudo o que havia dele na América e na Europa, já que o cinema de Ozu não circulava muito por essas bandas. Assim começava a história de amor entre ambos.
Wenders estava terminando o Paris, Texas – naquele período complicadíssimo da pós-produção do filme, em que ele não tinha dinheiro para finalizar – quando decide viajar ao Japão embebido pela imagem criada por Yasujiro Ozu da cidade asiática, buscando se deparar com o povo, a cultura e o afeto transmitidos pelas películas que havia assistido há pouco tempo. A essa altura, Ozu já era o seu cineasta favorito e então Wenders parte para ver face a face a matéria que um dia inspirou aquele que, para ele, era um dos homens mais brilhantes do cinema.
Tokyo-Ga é um de seus projetos mais pessoais e intimistas, no qual encontramos apenas ele e sua câmera vagando por Tóquio à procura de tudo aquilo que já conhecia, mas nunca havia experienciado. Não havia mais Yasujiro, é claro, mas o seu legado tinha ficado. Wim Wenders é o protagonista de seu próprio road-movie e a sua câmera-personagem capta nada mais nada menos do que aquilo que seus olhos veem na sua frente, como se olhasse para a verdade, para o real, para o verossimilhante. O encontro entre ambos acontece, mas é de outra ordem que não de ordem empírica, mas sobretudo atmosférica e espiritual, ou energética, uma vez que W.W entra em contato com todo o universo mitificado por Ozu, inclusive com seu ator predileto (Chishu Ryu), que atuou em quase todos os seus filmes, e seu diretor de câmera mais essencial (Yuharu Atsuta). A poesia do cineasta europeu encontra a delicadeza de seu mestre asiático.
Como diretor e acima de tudo cinéfilo, Wenders descortina o método de Ozu, analisando-o ponto a ponto, desde suas temáticas mais bem sucedidas até as suas técnicas cinematográficas, como as razões do porquê utilizar as lentes de 50mm. Aqui, ele também atua como um crítico de cinema e ensina a criticar ao mesmo tempo em que está fazendo a sua própria crítica ao seu cineasta mais caro e o resultado final é uma exaltação sublime de Yasujiro. Aclamado desde o início, Ozu é canonizado com louvor e poesia.
A temática da passagem do tempo, tão presente na estética de Wenders, mas também em seu homenageado, ganha corpo e atinge tons de melancolia: o trem que corta a cidade, as mudanças promovidas pela modernização e a transformação cultural imprimem um ritmo que, antes de ser o ritmo do documentário, é próprio do cinema de Yasujiro. O que era realidade em Ozu, torna-se nostalgia em Wim Wenders. Ele não se contenta com o Japão real; ele quer mais, quer o mítico, quer a mesma sensação que sentia ao ver a Tóquio dos filmes, mas não há mais e por isso soa tão desencantado, o documentário.
É uma narração silenciosa que é muito mais potente nas imagens que transmite do que na verborragia de uma fala. É engraçado porque, a dada altura do filme, Wenders encontra Werner Herzog, que é o oposto da sua personalidade. Absolutamente caótico em todos os níveis, Herzog, no meio da estética silenciosa de Wenders, aparece vomitando inúmeras impressões suas sobre o Japão e a arquitetura. Dois monstros do cinema alemão, um conhecido por sua grandeza e o outro, por seu minimalismo. Ainda falando em aparições, há um encontro com Chris Marker, que estava também no Japão nesses tempos, e aí tem um dos shots cinematográficos mais lindos do documentário. Marker odeia aparecer na frente das câmeras e Wenders consegue uma foto sua, mas apenas de um canto do rosto, apenas um trecho do seu olho, já que a outra metade Marker está encobrindo com uma folha de papel desenhada.
Parte fundamental para a composição das viagens sentimentais de Wim Wenders, este belíssimo documentário, ao ir em busca de seu objeto, encontra muito mais do que intencionava, surpreendendo a cada parada. Yasujiro Ozu está lá em todos os momentos, desde os mais banais aos mais tematicamente propícios. Tokyo-Ga inicia-se com um frame de Era uma vez em Tóquio e termina com o mesmo filme, numa passagem melancólica sobre o fim e a despedida, fechando o arco dramático do documentário com a conclusão plena de uma homenagem.
Tokyo-Ga (Tokyo-Ga, Alemanha Ocidental, EUA, 1985)
Direção: Wim Wenders
Roteiro: Wim Wenders
Elenco: Wim Wenders, Werner Herzog, Chris Marker, Chishu Ryu, Yuuharu Atsuta
Duração: 92 min.