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Crítica | Todos os Mortos

por Leonardo Campos
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O passado escravocrata do Brasil é uma penumbra que ainda nos acompanha no tempo presente, era de manifestações disfarçadas sobre o assunto, afinal, muitos acreditam piamente no mito da democracia racial por aqui. No desenvolvimento de Todos os Mortos, filme escrito e dirigido por Marco Dutra e Caetano Gotardo, temos um debate sobre estas manifestações fantasmagóricas que ainda nos assustam cotidianamente, abordadas ao longo dos 120 minutos da narrativa por meio de alegorias e trechos de horror onipresente, sensação que paira no ar a cada instante da história que reforça o quão essas cordas sensíveis ainda precisam de toques para que a reflexão se mantenha atualizada e o tópico temático não seja varrido para debaixo do tapete, algo comum numa sociedade como a nossa, insistente em esconder as suas agruras, como é o caso das questões estruturais do racismo,  celeuma que ao lado da intolerância religiosa, preenchem o painel das configurações atualizadas sobre preconceito em nossa nação.

No filme, acompanhamos por meio da assertiva direção de fotografia assinada por Helene Louvart, eficiente em sua composição de quadros, movimentos e utilização do POV, a trajetória de duas famílias dentro do mesmo espaço temporal. De um lado, temos as mulheres da família Soares, representada pela matriarca Isabel (Thaia Perez) e suas duas filhas, Ana (Caroline Bianchi) e Maria (Clarisse Kiste). O outro núcleo é formado por Iná (Mawusi Tulani), uma mulher que já foi escrava dessa família e possui ranço do passado conturbado, em especial, pela presença de seu filho João (Agyei Augusto), criança que gosta de passar algum tempo pela casa, como convidado especial da matriarca que sente na presença do garoto, algo positivo que a fez bem. Iná, por sua vez, desconfia sempre de qualquer farpa de boa vontade deste grupo de pessoas e tenta fazer o que pode para manter o filho afastado deste local, uma espécie de “mansão assombrada”, salvaguardadas as devidas proporções comparativas. Em linhas gerais, um território de traumas, mágoas e dores.

Inseridos num contexto de mudanças, tais como a queda do regime imperial e as novas etapas econômicas de um país recém-independente, Todos os Mortos desenvolve a sua história uma década após a suposta “libertação” dos escravos. Os colonizadores, em colapso, de um lado, e os anteriormente colonizados, libertos, mas sem as mesmas chances de prosperidade social, em suma, um horror. Nesse contexto, as narrativas se interligam quando Ana pede que a sua irmã Maria, uma freira bastante devota, faça seu contato com Iná, tendo em vista a realização de um ritual para a sua mãe, pois esta se encontra com dores constantes nas costas e com uma doença ainda não compreendida em sua totalidade. A irmã católica fervorosa até cumpre o solicitado, mas pede que Iná não faça um ritual de verdade, mas encene. O motivo é óbvio: ela não quer rasurar a sua relação com a fé. Ofendida, Iná também não se interessa em ofender as suas origens, o que resulta, sem o consentimento de todos, a realização de um ritual real, sem disfarces.

É nesta mudança de chave que o filme nos mostra os desdobramentos destas relações sociais, além de expor ao público as presenças sobrenaturais que estão supostamente em contato com Ana, mulher que alega conversar com pessoas que foram escravizadas no passado, mas já estão mortas. Esses seus relatos assustam aqueles que se conectam, mesmo que brevemente, com a personagem, figuras assustadas pelo tom das revelações, impossibilitadas de dar continuidade ao contato. Dividida em Independência, Finados, Natal e Carnaval, Todos os Mortos é sábio ao associar os personagens do passado com espaços cênicos do presente, numa proposta de exposição crítica da abordagem dos realizadores, equipe focada em demonstrar como essa temática não tão distante ainda se perpetua na dinâmica política e social de nosso país.

Com trilha sonora de Gui Braz e Salloma Salomão, também assertiva e cuidadosa ao não tornar a narrativa dependente de seus acordes, o filme conta com figurinos desenvolvidos por Gabriella Marra, adequados para o mergulho histórico proposto por essa narrativa dirigida artisticamente por Juliana Lobo, responsável pelo tom certeiro do visual em Todos os Mortos, produção que não se encaixa exatamente nos esquemas do terror explícito, mas delineia pontos importantes das narrativas tradicionalmente obscuras e enigmáticas, gerenciadas por meio de uma atmosfera fantástica. Não fossem os diálogos muito formais, excessivamente engessados dentro de uma perspectiva teatral de encenação, como se os personagens estivessem declamando algo, o filme seria ainda mais valioso enquanto experiência estética. O tom didático e a discussão empreendida não deixam a desejar, tal como os seus aspectos sonoros e visuais. O “porém” aqui é apenas uma falha estrutural que incomoda, mas não atrapalha a fruição da narrativa.

Todos os Mortos — Brasil, 2020
Direção: Caetano Gotardo, Marco Dutra
Roteiro: Arthur Warren
Elenco: Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi, Thaia Perez, Agyei Augusto, Rogério Brito, Andrea Marquee, Leonor Silveira, Thomás Aquino, Luciano Chirolli, Teca Pereira, Vinícius Meloni, Eduardo Silva, Livia Silva, Tuna Dwek, Alaíde Costa
Duração: 120 min.

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