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Crítica | Todo Mundo em Pânico

por Fernando JG
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Após vinte anos do lançamento, me parece razoável afirmar que Todo Mundo em Pânico é um clássico, sobretudo um clássico de gênero. Existe uma tendência na crítica de arte em geral que consiste num “erro de leitura” por parte do crítico em relação às obras num todo. Um exemplo evidente disso foi a crítica desconcertante e perturbadora de Monteiro Lobato para Anita Malfatti, em 1917. Em um texto chamado “Paranóia e Mistificação”, o crítico detonou Malfatti pelo seu estilo vanguardista, a nova tendência estética do início do século XX. O que faltou a Monteiro Lobato, e o que acredito que falta a muitos críticos, é a adequação da análise da obra com a sua finalidade. Não cabe fazer a crítica das telas de Anita Malfatti – recém vinda da Alemanha e embebida pelas tendências estéticas que ferviam na Europa, como o expressionismo – com valores realistas do século XIX. Do mesmo modo, não cabe olhar para Todo Mundo em Pânico da mesma maneira que se olha para os outros gêneros.

Se o longa é considerado ruim por ser tosco, então voilà, estamos diante de uma obra que ensina os passos de como fazer um filme tosco. A finalidade da comédia é uma: o riso. A coisa fica mais interessante ainda quando se nota que grandes furos de roteiro e de cena do próprio filme fazem parte de uma paródia total da arte cinematográfica. Não é de graça que a faca ensanguentada se limpa de uma hora para outra, ou que as coisas desapareçam: é, em grande parte, uma sátira geral dos lugares-comuns dos filmes que o longa se dedica a parodiar, não só deles, mas do cinema num geral. Todo Mundo em Pânico é o cinema falando sobre o cinema. Mas é também o cinema falando do ridículo. Do ridículo mais comum: da menina que troca de roupa na escola quando o pai a deixa no colégio; da malícia cotidiana; das segundas intenções, etc.

O filme, que faz referências ótimas a diversos outros (A Bruxa de Blair, Pânico, Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado, O Sexto Sentido, American Pie, etc.), conta com um elenco muito bem entrosado, que segura bem a comédia proposta pelo filme. O subtexto homoerótico conduz toda a narrativa, do início ao fim, mas esse contexto nunca é dado de maneira explícita, ele vai se revelando aos poucos, e o personagem central dessa paródia homoerótica é Ray, interpretado por Shawn Wayans, um não-hétero, que dá furos geniais sobre a sua sexualidade. A cena do banheiro público é bastante sugestiva e a forma como ele morre no toilet deixa uma mensagem bem pervertida nas entrelinhas, o que é hilário. Ao final, Bobby (Jon Abrahams) e Ray acabam mortos, um em cima do outro, simulando la petite mort.  Outro ponto forte é a neurose sexual dos personagens: como em American Pie, todo mundo, o tempo inteiro, do jovem ao velho, está pensando em sexo. Na maioria das vezes, as coisas vão acabar em sexo ou em uma piada sexual, mas de um modo bem ordinário.

O modo como a direção trabalha com o cinema autorreferencial é um mérito. Além das constantes referências, o aspecto estilístico central da série de filmes Todo Mundo em Pânico é a paródia e o nonsense. Toda pessoa, a um dado momento, ao assistir a um filme de terror, já se perguntou: “Mas por que você não sai daí? Você não está vendo que o assassino está por perto?” E então, em seguida, ocorre uma morte previsível, já que o personagem foi ao encontro da morte. Esse encontro dos personagens com a morte é trabalhado de modo genial na paródia e diversas cenas brincam com essa situação ao mostrar alguns personagens que escolhem, por boa vontade, seguir uma placa de estrada que aponta, literalmente, para a morte. Ou ainda quando Buffy (Shannon Elizabeth) encontra com o assassino no vestiário e ironiza os roteiros dos filmes de terror: “Então, agora eu caio? Começo a sangrar? Espera, eu tenho de quebrar a perna”. Essa cena relembra muitos clássicos do terror em que o assassino persegue a vítima, que se arrasta pelo caminho, tropeça, cai, demora a levantar etc. – situações toscas do gênero do horror. 

Com direção de Keenen Ivory Wayans, o filme conta com uma representatividade muito importante. Apesar da comédia, o longa introduz protagonistas negros e os oferece importância fílmica, tratando de maneira leve o tema do racismo, com muito humor. Quando Cindy (Anna Faris), a protagonista, está em apuros, a direção brinca com a rapidez que a polícia tem em atender melhor algumas demandas devido ao aspecto racial ao colocar, na boca de Cindy, a seguinte frase: “White girl in trouble”, em mensagem enviada à polícia – e quatro carros de polícia aparecem imediatamente. Essa mesma questão é lembrada por Jordan Peele em Corra! (2017), quando ao final achamos que a polícia, chegando na casa da namorada de Chris, e vê-la ensanguentada, irá resgatá-la, no entanto, Peele inverte a situação, surpreendendo. Com uma carga de humor e nonsense bastante elevada, estas questões são tratadas de maneira sutil, apesar de estarem explícitas nas camadas fílmicas. 

Todo Mundo em Pânico é um clássico imediato do gênero da comédia, engatando no sucesso do terror noventista e apropriando-se dele para produzir. Com vinte anos completos, o longa de Wayans é o retrato de uma geração e uma memória afetiva muito poderosa. Metalinguístico, engraçado, criativo, perdurável e arriscado, Todo Mundo em Pânico é uma homenagem e uma ridicularização de si mesmo e do próprio cinema, o que o torna célebre ainda hoje, pelo bem ou pelo mal. 

Todo Mundo em Pânico (Scary Movie, EUA, 2000)
Direção: Keenen Ivory Wayans
Roteiro: Shawn Wayans, Marlon Wayans, Buddy Johnson, Phil Beauman, Jason Friedberg, Aaron Seltzer
Elenco: Anna Faris, Jon Abrahams, Lochlyn Munro, Shannon Elizabeth, Regina Hall, Shawn Wayans, Marlon Wayans, Cheri Oteri, Carmen Electra
Duração: 88 min.

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