“Ahí está la luna
¿Cómo se podría quitar del cielo la luna?”Versos de Dime Luna, da banda mexicana Maná
(Canção predileta de Thanise Correa, 18 anos, uma das vítimas da Kiss)
Santa Maria. Rio Grande do Sul. 27 de janeiro de 2013. O dia que marcou a história recente do Brasil por uma triste tragédia. Em uma madrugada de sábado, um incêndio ocorrido na boate Kiss ceifaria a vida de 242 jovens e ganharia as páginas de jornais brasileiros e internacionais. Fora um dos incêndios com maior número de mortos já registrados em todo o mundo e sua exibição exaustiva em todos os meios de comunicação do país nos fizeram crer se tratar de uma história esgotada. O Brasil inteiro imaginou que soubesse tudo sobre aquela noite fatídica. Cinco anos depois, o novo livro-reportagem da mineira Daniela Arbex, uma das grandes jornalistas em atividade no país e vencedora de dois Prêmios Jabuti pelos aclamados Holocausto Brasileiro e Cova 312, chega às livrarias para recontar essa história. Agora com o detalhamento de uma jornalista que olha para os bastidores dos fatos que investiga e não somente para dados e estatísticas, cegos da dimensão mais humana da tragédia na Kiss. Todo Dia a Mesma Noite é a história que todos pensavam conhecer, sob lentes inteiramente novas.
A escritora e jornalista viajou até a cidade gaúcha de Santa Maria para compreender in loco o que aquela famigerada noite representou para os seus habitantes. Recolheu depoimentos preciosos de familiares e amigos das vítimas, médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde que trabalharam no atendimento a elas e também de outros envolvidos direta ou indiretamente no acontecimento que paralisou o Brasil. Seu trabalho de dar voz aos vitimados mantém a qualidade jornalística, mas demonstra amadurecimento narrativo. Se, em Holocausto Brasileiro, a narrativa ocorria de modo relativamente linear para contar uma história de abuso e impunidade que se arrastou por décadas, em Todo Dia a Mesma Noite, Arbex picota completamente a linha narrativa. As histórias são contadas em paralelo, alternando-se em recortes que só fazem aumentar a angústia do próprio leitor. A escolha técnica da narrativa não poderia ser mais eficaz, já que transmite a sensação de desorientação causada por um acontecimento súbito. Um paroxismo que levou uma onda de desespero a uma cidade inteira em poucas horas. O trabalho de Daniela Arbex com a temporalidade de seu relato é esperto e comovente.
Todos os depoimentos registrados nas páginas de Todo Dia a Mesma Noite estão situados sob o ponto de vista dos envolvidos na tragédia, convidados a compartilhar suas dores (elaboradas ou não) após cinco anos do evento. São relatos carregados de sofrimento e saudade. Das vítimas temos oportunidade de conhecer parte de suas histórias. Conhecemos um grupo de cinco amigas que foram à Kiss para comemorar o aniversário de uma delas. O rapaz que gostava de se vestir com trajes típicos de um maragato e que queria ter ido à boate vestindo suas bombachas. Outro que conseguiu escapar do incêndio quase inconsciente e, de tão aturdido, não notou os próprios braços queimados, com a pele morta pendurada (cena que remete automaticamente à menina Kim Phuc, registrada na mais famosa fotografia da Guerra do Vietnã). O médico que se manteve fiel à sua obrigação de atender as vítimas da Kiss mesmo tendo o próprio filho como uma delas. Os tantos celulares dos mortos, que tocaram por toda a noite, alguns mais de 150 vezes – a sinfonia da tragédia, nome do segundo capítulo do livro. São muitas as histórias que compõem o novo livro da premiada jornalista mineira.
Daniela Arbex, mesmo que precisa quanto aos números e aos fatos, cataloga as dores e as faltas deixadas pelas vítimas como seu espólio mais valioso. Ela destampa algo que redimensiona a tragédia. O incêndio da boate Kiss não interrompeu somente 242 vidas em pleno curso. Ele alterou a trajetória de milhares de outras vidas relacionadas àquelas que se perderam. Histórias, amores, afetos e esperanças foram asfixiados no interior daquela casa noturna e Todo Dia a Mesma Noite é muito feliz em transmitir o quão longe essas perdas estão do escopo de qualquer contabilidade. A sensibilidade de jornalista de Arbex também não falha ao evitar o clichê de tratar como heróis unidimensionais todos aqueles que participaram do socorro às vítimas. Apesar de tantos atos altruístas comoventes, impressionei-me com o relato de um rapaz que ajudou a carregar corpos. Os primeiros ele carregou com todo o cuidado e dedicação. Os últimos lhe pareceram um fardo – algo de que ele queria apenas se livrar ao sentir uma repulsa insuportável à tarefa. A honestidade da confissão é aterradora. Ela humaniza o seu autor e traz ao livro-reportagem de Daniela Arbex um contraponto extremamente necessário.
E a jornalista juizforana é contundente ao demonstrar o quão alto foi o custo para todas as pessoas que se envolveram naquele 27 de janeiro. Muitos familiares, amigos, profissionais de saúde, policiais e bombeiros seguem em tratamento psiquiátrico. Casais se separaram ante a ruína de suas famílias. Doenças mentais eclodiram e tentativas de suicídio foram a via final de um sofrimento tão profundo (há uma narrativa especialmente dramática e marcante em que isso acontece). Aqueles que generosamente compartilharam suas histórias, a despeito de toda a dor que elas suscitam, são abordados com camadas suficientes para que sejam, de fato, homens e mulheres identificáveis, inseridos em um cenário de catástrofe e reagindo humanamente a ele. A autora também não esconde a pior face do ser humano em passagens protagonizadas por aproveitadores baratos, religiosos insensíveis ao sofrimento dos pais e homens públicos que colocam “a política na frente da dor”. Mesmo achando um tanto exagerada a comparação que se faz no décimo primeiro capítulo – Holocausto dos tempos modernos –, a narrativa como um todo trata do tema com enorme dignidade.
Com prosa direta e envolvente, Daniela Arbex chega a mais um grande livro-reportagem em sua carreira. Em uma entrevista, ela conta que a história das vítimas da Kiss lhe foi confiada sem que ela tivesse a real noção de tudo o que poderia ser narrado sobre esse triste evento. Como ela mesma diz, se em Holocausto Brasileiro e Cova 312, foi a jornalista que escolheu sua reportagem, em seu terceiro livro, foi a história que escolheu a sua porta-voz. O incêndio em Santa Maria é um microcosmo do que ocorre em todo o país e o livro-reportagem de Arbex enseja uma reflexão sobre a própria noção de cidadania, afinal, qual é o poder público que realmente desejamos que nos represente? Todo Dia a Mesma Noite é um emocionante memorial às vítimas de uma história que precisa estar sempre viva em nossa memória coletiva.
Todo Dia A Mesma Noite – Brasil, 2018
Autora: Daniela Arbex
Editora: Intrínseca
Páginas: 248