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Crítica | Toda Luz Que Não Podemos Ver

A minissérie que não devemos ver.

por Ritter Fan
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Um dos vários “testes” que o saudoso crítico de cinema americano Gene Siskel propunha para determinar a qualidade de uma obra, especificamente no caso de adaptações, era se a adaptação audiovisual criava a vontade no espectador de ler o material original, pois seria um triunfo se a curiosidade do espectador fosse atiçada a esse ponto. No caso presente, tendo a obra literária original de Anthony Doerr sido laureada com o Prêmio Pulitzer ou não, a minissérie desenvolvida e escrita por Steven Knight, que criou Peaky Blinders, Taboo e See, e dirigida por Shawn Levy, mais conhecido por comédias como a Trilogia Uma Noite no Museu, mas que também capitaneou Gigantes de Aço e O Projeto Adam, teve o efeito exatamente oposto comigo. Todo meu interesse sobre o elogiado romance de 2014 foi por água abaixo ao longo dos quatro episódios desse melodrama novelesco raso que acabou chegando às telinhas.

A premissa, porém, é excelente, com dois jovens em polos opostos da Segunda Guerra Mundial unidos por lembranças do passado que, aos poucos, vão se aproximando. De um lado, há a francesa cega Marie-Laure LeBlanc (Aria Mia Loberti quando mais velha e Nell Sutton quando mais nova) que transmite códigos para a inteligência aliada via seu programa de rádio ilegal na cidade murada e dominada pelos nazistas de Saint-Malo e, de outro, há o soldado alemão Werner Pfennig (Louis Hofmann), especializado em rádios e na localização de transmissões desautorizadas que começa a ouvir Marie-Laure diariamente, mantendo-a como um segredo de seus superiores.

Apenas com a descrição acima, chega a ser facilmente perceptível a potencial riqueza e sutileza da narrativa, mas os roteiros de Knight parecem o proverbial elefante na loja de louças, fazendo da beleza e da delicadeza da história uma pilha de cacos que só ganha algum valor quando consideramos as atuações da dupla principal, com especial destaque para Aria Mia Loberti, legalmente cega em razão de acromatopsia, que mostra, em seu primeiro papel, o tom exato de sua sofrida e vulnerável, mas psicologicamente forte personagem. Louis Hofmann, por seu turno, confirma as qualidades dramáticas que ele mostrou ter como Jonas Kahnwald, em Dark, ainda que seu papel exija menos do que o de sua colega de profissão. Infelizmente, porém, as atuações, sozinhas ou mesmo que combinadas com a boa direção de arte e as presenças de Hugh Laurie e Mark Ruffalo no elenco, não salvam Toda Luz Que Não Podemos Ver de ser uma inábil e até mesmo boba narrativa.

Talvez o maior problema da minissérie seja o quanto ela é maniqueísta e estereotípica na forma como retrata os nazistas. Sim, toda pessoa normal odeia nazistas, mas isso não quer dizer que todos eles precisam ser retratados como monstros abjetos capazes de comer o fígado de bebês recém-nascidos enquanto escutam Richard Wagner. Mas é isso que Knight faz com todos os nazistas que aparecem nos episódios em regime de porta giratória, com apenas um mantendo-se do começo ao fim, o obsessivo e doente (e não apenas mentalmente) caçador de tesouros Reinhold von Rumpel (Lars Eidinger, que consegue ser mais histriônico do que o sádico agente da Gestapo vivido por Ronald Lacey, em Os Caçadores da Arca Perdida) que quer localizar Marie-Laure por achar que ela tem o diamante Mar de Chamas que, segundo a lenda, dá imortalidade a quem o possui. No lugar de permitir que o elenco que faz os soldados nazistas construa algo minimamente sutil e com camadas, tudo o que vemos são vilões que só faltam esfregar as mãos, lamber os beiços e soltar risadas maníacas e, com isso, o que era para ser sério e potente fica.. ridículo…

E o pior é que havia ainda a oportunidade de o roteiro lidar de verdade com a moralidade do próprio Werner Pfennig lidando, com mais do que um julgamento improvisado de alguns segundos, com seu papel na máquina de matar nazista. Mas não. Tudo o que vemos é um personagem bonzinho, puro como a neve dos alpes, que apenas foi levado, pela circunstâncias e injustiças da vida, a se tornar um soldado nazista (ou, talvez mais apropriadamente, um soldado alemão que não é nazista). Essa abordagem simplista termina de enterrar, de vez, toda e qualquer possibilidade de a minissérie ser mais do que uma novela da Globo, em que tudo é preto ou branco, sem nenhuma preocupação com os tons de cinza. E isso é tão sério que não seria errado concluir que a produção, no final, quer dizer que aqueles que apenas obedeciam ordens na Alemanha Nazista era coitadinhos forçados a fazer o que fizeram e que mereciam uma segunda chance.

Existem diversos outros aspectos que detraem do potencial da obra nos mais variados graus. Os próprios personagens de Laurie e Ruffalo são completamente subutilizados, ou melhor, usados exclusivamente para elevar o nível lacrimal do melodrama sem que os atores ganhem o espaço devido para realmente serem mais do que exemplos de absoluta virtude, sem nenhum tipo de nuança, algo que parece ser proposital por parte de Shawn Levy em um trabalho de direção que luta para encontrar seu tom e só acerta de verdade na forma como enfoca a protagonista. Em grau menor, há o próprio conceito de Marie-Laure viver não em um subsolo escondido e protegido de bombas, mas sim em uma torre, como Rapunzel, que nunca é atingida e, ainda por cima, com a jovem – que é cega, vale relembrar – quase nunca usando sapatos. Isso depõe tanto contra a lógica interna da obra, mesmo que seja simbólico ela transmitir de uma torre, que eu me peguei revirando os olhos por mais vezes do que gostaria.

Apesar de eu não poder acreditar que o que Anthony Doerr escreveu sequer se aproxime do que a adaptação é, não consigo mais encontrar resquícios de força de vontade para ler o romance. Quem sabe em algum momento futuro, quando minha memória de queijo suíço me fizer esquecer da minissérie, eu finalmente não retorne à obra original para, possivelmente, retirar esse gosto esquisito que a adaptação deixou? Nesse meio tempo, por outro lado, espero muito ver Aria Mia Loberti e Louis Hofmann mais vezes em filmes e séries que realmente aproveitem os talentos desses jovens.

Toda Luz Que Não Podemos Ver (All the Light We Cannot See – EUA, 02 de novembro de 2023)
Desenvolvimento: Steven Knight (com base em romance de Anthony Doerr)
Direção: Shawn Levy
Roteiro: Steven Knight
Elenco: Aria Mia Loberti, Louis Hofmann, Lars Eidinger, Hugh Laurie, Mark Ruffalo, Marion Bailey, Nell Sutton, Jakob Diehl, Rosie Hilal, Felix Kammerer, Andrea Deck, James Dryden, Corin Silva, Luna Wedler, Bernd Hölscher, Ed Skrein, Richard Sammel, Rhashan Stone, Elizabeth Dulak, Sarah Crowden, Maggie Daniels
Duração: 228 (4 episódios)

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