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Crítica | Tocaia no Asfalto

por César Barzine
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O tiro, o beijo e a reza. Tudo isso em um mesmo homem. Três movimentos que se contradizem, numa intensa e ambígua dinâmica, eles são os passos de um sujeito multidimensional, em que tudo se distingue ao mesmo tempo em que se entrecruzam. E essa versatilidade não está apenas no desenvolvimento do protagonista Rufino, está no filme por completo, que se choca em múltiplas tramas e conceitos, entregando uma fusão de diferentes arquétipos, interpretações e ambientações. Um longa formado por diversas sínteses, que acabam, como de previsto, terminando em mais violência, fechando o arco que se iniciou com uma cena de um assassinato arbitrário.

Roberto Pires atinge um nível de maestria em sua decupagem que só foi alcançada por grandes mestres da história do cinema. O longa possui um jogo de câmera de arrancar suspiros, que traz toda uma leveza para um filme carregado de sujeira. A câmera transforma o obscuro em sublime, fazendo da degradação um poema, convertendo uma história dominada por conflitos e podridão em um belo retrato de pessoas perdidas. Um exemplo disso é o beijo em close-up da prostituta com o pistoleiro, que é um dos melhores momentos românticos do cinema nacional. O visual escuro, os corpos deitados e as tensões em volta transformam aquele singelo beijo em algo delirante aos olhos do espectador. 

O mesmo pode-se dizer dos closes do bandido na igreja e também dos movimentos de câmera neste espaço, apresentando o sagrado como antítese da sujeira que o corrói, ao mesmo tempo que é uma muleta para ele. Rufino toma a fé como algo íntimo e tenta conciliar ela com a prática de seus crimes, chegando a rezar para cada assassinato que comete. O paradoxo entre crença e pecado parece não fazer sentido a ele, restando a ambiguidade de um homem que se apresenta como vítima do mundo. Um pistoleiro religioso também se encontra no filme O Nome da Morte, de Henrique Goldman, mas com uma melancolia e constantes dilemas que Rufino dispensa. Ele não possui nenhuma insegurança quanto aos seus atos, pois coloca eles como redenção da morte de seu irmão.

Rufino busca a imagem de estar à margem da sociedade e, assim como o criminoso de O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, faz da decadência a sua glória, tornando o crime a sua vontade de potência. Ao se afundar na miséria que o mundo oferece, ele buscou ir contra esse próprio mundo, tratando o ressentimento e a rejeição da sociedade como forma de afirmação da vida.

Mas não é apenas Rufino que está à margem da sociedade e nem somente ele que se encontra em um estado degradante. Essas características se estendem aos demais personagens, ligando a desonra de todos eles sob diversos aspectos. O assassino de aluguel, as prostitutas, o cafetão, o político corrupto e seu comparsa; ambos operando na miséria humana, oscilando em variadas classes sociais e apresentando a baixeza de um país. Este país que ainda se encontra preso ao coronelismo, prática que se locomove à área urbana, onde os conflitos também se resolvem na base do tiro. Tocaia no Asfalto é quase um western, realizando um resgate à selvageria de um lugar que parece não ter se desenvolvido.

O grande oposto disso tudo é o deputado Ciro, que se assemelha ao personagem de James Stewart em A Mulher Faz o Homem, de Frank Capra. Um sujeito idealista que busca combater a corrupção, o que produz uma inimizade com o coronel daquela região. A situação se agrava com o romance do deputado com a filha do político Pinto Borges. A relação dele com a moça se inicia em atuações que evocam uma forte teatralidade em seus diálogos longos e pomposos, quase que monólogos. O tom e o conteúdo solene de tais conversas criam um teor literário ao filme, faz de discussões políticas e pessoais pequenas epopeias.

A direção de Roberto Pires é complemente magistral, além dos pontos citados anteriormente, a câmera arranca uma intensidade em alguns enquadramentos e movimentos, construindo uma experiência densa ao duplicar o peso dramático dos personagens pela forma com que são apresentados. Há diversos closes e planos conjuntos penetrantes, muitos deles acompanhados por uma iluminação que contrasta a face dos personagens entre o claro e o escuro, criando uma veia noir no filme que se encaixa perfeitamente ao roteiro, aprofundando as intrigas e as tensões apresentadas.

Movimentos horizontais e a câmera subjetiva exploram o espaço com uma fluidez bastante envolvente. Fluidez que também surge nos saltos de um plano para outro, onde a edição provoca belíssimas conexões, com uma harmonia que cai muito bem diante dos vários enredos paralelos presentes. O uso de zoom-in e zoom-out complementam a excelente exploração daqueles espaços, que, assim como os demais recursos usados, expandem a geografia do local para um duelo carregado de adrenalina e tensão. Sem nunca ser exibicionista demais, a direção caminha de um lado para o outro com uma simplicidade acompanhada de uma alta beleza. 

Todo esse apuro técnico vem acompanhado de uma trama que amarra os diversos núcleos narrativos com coesão e dinamismo, articulando perfeitamente as múltiplas intrigas do filme. E por trás dessa história carregada de ação e muitos desdobramentos, também há personagens densos que compõem uma série de dualidades: paixão e amargura, assassinato e justiça, corrupção e honestidade, pecado e fé. Com Tocaia no Asfalto, Roberto Pires demonstra que o grande western brasileiro não se encontra no cangaço, mas em uma metrópole em que todos se perdem.

Tocaia no Asfalto – (Brasil, 1962)
Direção: Roberto Pires
Roteiro: Rex Schindler (argumento), Roberto Pires (roteiro)
Elenco: Agildo Ribeiro, Arassary de Oliveira, Adriano Lisboa, Geraldo Del Rey, Angela Bonatti, Milton Gaucho, Mecenas Salles, Antonio Pitanga, David Singer
Duração: 94 minutos

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