Quando questionado sobre a tessitura da escrita de Tocaia Grande, Jorge Amado lançou uma resposta bem interessante: “desta vez, não estou escrevendo um romance, estou construindo uma cidade”. E assim, ao contemplarmos as volumosas 500 páginas do livro, percebemos que em vez de termos Gabriela, Dona Flor, Tereza Batista ou Tieta do Agreste como personagens centrais, a história e o grande personagem do romance é a cidade que nomeia a obra, uma volta triunfal ao período do Ciclo do Cacau, vislumbrados pelos leitores nas publicações mais antigas do escritor baiano conhecido por retratar, com simplicidade e maestria, a sua visão utópica de Brasil e de Bahia no âmbito da literatura. Lançado pela Record em 1984, hoje parte do grupo editorial da Companhia das Letras, este livro ganhou ainda mais projeção depois que foi transformado em novela pela Rede Manchete, ofertando-se para o leitor como mais uma das boas histórias do autor sobre tipos em meio ao caos social de onde se encontra mergulhados, isto é, as habituais prostitutas, jagunços, coronéis, dentre outras figuras ficcionais comuns ao universo de Jorge Amado. Desta vez, as memórias centralizam a forte história sobre poder e política.
Narrado em terceira pessoa, Tocaia Grande nos apresenta o desenvolvimento de um local inicialmente concebido para ser passagem de tropeiros, mas que se transforma numa cidade posteriormente, habitação para as diversas situações que gravitam em torno da história estabelecida no romance. Como palavras-chave centrais, o livro traz as discussões sobre o poder do coronelismo e a transformação de conflitos simples em momentos de violência intensa. É um dos últimos trabalhos de Jorge Amado, produção literária que traz à tona as críticas sociais do autor com uma estrutura mais poética que as observações e reflexões politizadas de sua era mais panfletária e, digamos, com menor intensidade literária, algo que vai surgindo com a maturidade.
Dividido em sete partes, Tocaia Grande nos coloca diante de uma história que permite a contemplação das paisagens através do estilo peculiar do escritor, numa observação constante dos elementos históricos, geográficos e culturais de uma época muito particular que marcou o desenvolvimento econômico e social de nosso território. É um mundo pequeno, mas que abarca uma diversidade de tipos e costumes que o transforma num espaço “universal”. Como habitualmente acontece nas histórias de Jorge Amado, um painel múltiplo de personagens se apresenta ao leitor, todos com seus conflitos que colaboram com o desenvolvimento do enredo. Capitão Nazário é um dos mais expressivos, espécie de dono do lugar, homem rico que serviu aos coronéis durante longo tempo, tornando-se um “dominador” local.
Há também o estrangeiro, aqui acoplado no personagem turco Fadul Abdala, um simpático comerciante instalado na nova cidade. Devo destacar, também, Castor Abduim, um negro retinto que é o sucesso das prostitutas locais, bem como de nós, leitores, haja vista a sua simpatia; Bernarda, com seu passado de abusos sexuais e cuidados com a mãe doente estabelece momentos de bastante emoção, tão forte quanto outras mulheres da região, tais como Coroca (personagem que se parteira do lugar), Zilda, Danila, Diva, dentre tantas outras, integrantes de um fabuloso mosaico de figuras ficcionais que estruturam esta história sobre a violência e os jogos de poder por detrás da formação não planejada de uma cidade que simplesmente “acontece”. Por meio de neologismos, elementos da linguagem popular e inserção de humor em meio ao cenário de caos social, Jorge Amado constrói um romance repleto de ironias, erotismo, críticas ao nosso sistema judicial, afundado em falhas, bem como ao desenvolver das relações políticas, manchadas constantemente pela corrupção e jogos e interesses pessoais dos envolvidos. Em linhas gerais, um ótimo romance, de uma época madura, mas com o mesmo esquema adotado pelo escritor desde sempre, numa mixagem de lirismo e crítica.
Tocaia Grande (Brasil) — 1984
Autor: Jorge Amado
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 500