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Crítica | Tipos de Gentileza

Um Lanthimos pós-Hollywood fazendo um Lanthimos pré-Hollywood.

por Ritter Fan
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O diretor grego Yorgos Lanthimos nunca deixou de ser fiel ao seu estilo absurdista, bizarro e até surrealista de fazer filmes. Mesmo assim, é bem claro que existem duas igualmente magistrais versões do cineasta, uma que existia antes de ele ser cooptado para trabalhar na máquina hollywoodiana, algo que aconteceu mais ou menos por ali quando ele foi “descoberto” com O Lagosta, e outra depois que ele foi levado para o outro lado do Oceano Atlântico. Tipos de Gentileza, produzido enquanto ele acabava o laureado e visualmente espetacular Pobres Criaturas, é Lanthimos tentando retornar à versão pré-Hollywood de si mesmo e, em grande parte, conseguindo.

Só que Tipos de Gentileza não é um filme. Trata-se de uma trinca de curtas-metragens ou, sendo mais honesto, quase médias-metragens que, além de ter os mesmos atores vivendo papeis diferentes, conectam-se não narrativamente (pelo menos não completamente ou para além de R.M.F., um dos personagens que empresta seu nome ao títulos), pois são filmes realmente separados, mas tematicamente, com Lanthimos, em pinceladas amplas, sempre procurando falar da perda de autonomia, do controle da própria vida, o que podemos interpretar, de certa maneira, como uma discussão semelhante, mas na direção oposta, da que seu longa anterior propõe, já que, lá, vemos Bella Baxter buscando conhecimento e, no processo, ganhando liberdade e sua autonomia, ou, sendo mais específico, sua emancipação. Há uma evidente “conversa” entre as obras, mas o tríptico de Lanthimos, que resulta em seu filme mais longo até hoje, é bem menos esperançoso, lidando com a natureza e condição humanas sem nenhum tipo de verniz, o que só reitera o que mencionei no parágrafo de abertura que se trata de Lanthimos retornando à sua pegada mais crua e pesada – mas não sem humor – de obras como Kinetta e Dente Canino.

Com Jesse Plemons e Emma Stone revezando-se no protagonismo – Plemmons é o destaque no primeiro curta, com os dois dividindo as atenções no segundo e Stone como a protagonista do terceiro – e outros atores permanecendo como coadjuvantes de maior ou menor relevância em cada um deles, como são os casos principalmente de Willem Dafoe, Margaret Qualley e Hong Chau. Sob diversos aspectos, cada ator parece viver versões de um mesmo personagem, com Plemmons, por exemplo, começando como o executivo submisso ao seu chefe, depois como um policial lamentando o desaparecimento de sua esposa depois de uma expedição marítima e, finalmente, como o membro de culto que procura uma espécie de profetisa capaz de reviver os mortos. São variações dos mesmos personagens em variações de histórias que, se despidas dos floreios, lidam com escolhas tolhidas, com a obsessão, com o sexo não ortodoxo e, em última análise, com a morte, tudo em ambientações cotidianas e até mesmo mundanas e um crescendo de elementos estranhos e macabros que vão tomando a narrativa de assalto.

Não tenho intenção alguma, aqui, de entrar nos detalhes de cada uma das três partes de Tipos de Gentileza, título irônico já que falta muita gentileza às atitudes dos personagens, menos por receio de dar spoilers e mais para pontuar que se trata de uma obra em que o importante é a experiência e a imersão. O que Lanthimos escreveu ao lado de seu parceiro de quase sempre Efthimis Filippou tem escopo bem menor e mais econômico do que seu filme anterior e também do que A Favorita, como um filme independente, ainda que um “independente chique”, seja pelo elenco de peso, seja pela variedade de locações que vão de mansões luxuosas e escritórios envidraçados a motéis humildes e clínica veterinária, com um trabalho de fotografia por Robbie Ryan, em sua terceira parceria seguida com o grego, que cria unicidade visual ao tríptico, mas sem repetir exatamente as abordagens, com o primeiro e segundo curtas funcionando inclusive como opostos em termos de intimidade, distanciamento de câmera e escolha da paleta de cores e o terceiro quase sendo uma fusão dos anteriores.

Mas o que realmente se destaca nos curtas são as atuações do elenco central. Todos estão excelentes vivendo as tais “variantes” de um mesmo tipo de personagem, com Dafoe divertindo-se demais com suas três figuras controladoras e possessivas. Stone, mesmo não parecendo ter “saído” de sua personagem frankensteiniana anterior, mostra-se muito dedicada em sua aparente missão de desconstruir-se diante das câmeras, o que é sempre uma postura bem-vinda, mas rara de se ver por aí, especialmente nesse ponto da carreira. Mas diria, sem medo de errar, que é Plemons quem merece maior distinção. O ator, que, pelo menos para mim, nunca havia sido capaz de trabalhar bem com nuanças, aqui vive três personagens – que poderiam ser primos – tão iguais quanto diferentes, com transformações sutis de um para o outro que vão bem além das ajudas dramáticas que decorrem naturalmente das trocas de figurino e penteado. E o melhor é que ele constrói três personagens desagradáveis, que força o espectador a fazer uma escalada de empatia que nem sempre é totalmente possível, mas que, mesmo assim, são relacionáveis, humanos (profundamente falhos, portanto) que são desagradáveis justamente por isso.

Lanthimos, porém, pareceu-me enamorado demais com o material que tinha em mãos, material esse que, por mais interessante que possa ser, é inegavelmente repetitivo e que, portanto, não precisava da duração total que tem. Consigo perceber que o diretor quis facilitar a imersão e também trabalhou na construção das atmosferas dos curtas, mas o que permanece fresco no primeiro – A Morte de R.M.F. – começa a caminhar de lado em R.M.F. Está Voando e faz com que R.M.F. Come um Sanduíche um curta que não quer acabar, testando a paciência do espectador e segurando-se, no fundo, em razão da espera pelo inesperado, algo que Lanthimos, devo admitir, sempre consegue entregar e, diria, com doses cada vez mais generosas de bizarrices macabras. Como Tipos de Gentileza é um filme contemplativo, é até natural que existam repetições e circularidades, mas o cineasta abusa um pouco do que ele efetivamente precisava fazer para passar sua visão de mundo. Três curtas de 30, no máximo 40 minutos cada dariam conta do recado sem permitir o acúmulo de gordura que nunca é queimada e evitaria o desgaste que começa a se impor lá pela metade do segundo filme.

Mesmo assim, é muito bom ver Lanthimos recusando-se a descansar em berço esplêndido e usando todo o seu peso e influência em Hollywood para fazer o que quer enquanto pode, pois não há nenhum lugar mais inconstante e mais implacável (e mal agradecido) do que esse em que ele hoje circula e que pode descartá-lo quase que literalmente do dia para a noite assim que suas obras não derem mais o tipo de retorno que se espera. Tipos de Gentileza será, muito provavelmente, uma dessas obras que não terão nem bilheteria, nem prestígio, de certa forma passando em branco por muita gente, talvez ganhando algum reconhecimento somente em futuro incerto e não sabido, mas é justamente por isso que ela tem valor. Nem todo mundo tem coragem de usar a máquina de fazer filmes da Costa Oeste dos EUA para seus projetos pessoais, mas Lanthimos, ainda bem, não quer nem saber.

Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness – Irlanda/Reino Unido/EUA/Grécia, 2024)
Direção: Yorgos Lanthimos
Roteiro: Yorgos Lanthimos, Efthimis Filippou
Elenco: Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe, Margaret Qualley, Hong Chau, Joe Alwyn, Mamoudou Athie, Hunter Schafer, Yorgos Stefanakos, Merah Benoit, Krystal Alayne Chambers
Duração: 164 min.

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