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Crítica | Tia Virgínia (2023)

Família entre a dor e o amor.

por Frederico Franco
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Tia Virgínia não é exatamente sobre Virgínia. É sobre como sua família disfuncional a fez ser como ela é. Perto do Natal, Virginia, responsável por tomar conta de sua mãe em estado terminal, recebe suas duas irmãs, Vanda e Valquíria, para comemorar o dia vinte e cinco de dezembro. O filme se passa apenas em um dia: a véspera do Natal. As três irmãs são interpretadas pelas brilhantes Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso, respectivamente. Ao longo desse dia, os mais diversos confrontos, físicos e verbais, marcam negativamente a data de celebração. A iminente morte da mãe também pauta toda a relação entre as três irmãs que possuem uma diferente relação com a perda da matriarca da família: desde o futuro da casa até o estado mental de Virgínia.

Uma primeira marca estética do filme de Fábio Meira é a construção de um cenário completamente lotado de objetos cênicos. A casa, pertencente à mãe da família, é repleta dos mais variados tipos de prataria e enfeites requintados. O apartamento em nada reflete a idosa: seu olhar vazio e suas mínimas expressões perante a vida representam um curioso contraste com a pompa do apartamento. Louças caras, grandes e belos quadros, sofás estilizados. Tudo é uma marca de um passado que não existe mais. Passado, inclusive, parece ser a única coisa que ainda move Virgínia. A protagonista parece não aceitar que sua mãe já perdeu a lucidez há algum tempo. Virgínia faz de tudo para não acreditar no fim que se aproxima: inventa conversas, conversa como se a mãe ainda a ouvisse e coloca na conta da matriarca algumas decisões suas. Vanda e Valquíria, no entanto, surgem para puxar Virgínia novamente para a realidade. Brigas e mais brigas marcam a tônica entre as três. Anteriormente presa ao passado, o choque de realidade de Virgínia é bruto, comprometendo sua sanidade e sua relação com aqueles à sua volta.

A encenação construída por Fábio Meira faz jus a todos os conflitos envolvendo a família. O espectador não é poupado de nenhum detalhe. Os breves momentos de paz são realmente breves: quando as três irmãs estão em tela, é como se fossemos puxados por um buraco negro forte composto por puro ressentimento. Nada escapa da câmera. Não há ação sugerida ou dinâmicas abertas à interpretação. Toda a raiva, a amargura e um torto senso de amor é entregue ao espectador em sua forma mais pura. As ações físicas das protagonistas, sempre muito pesadas, quase biomecânicas, levam os conflitos quase às vias de fato. Por mais que seja um filme que tente explorar algumas gags humorísticas, o que fica como marca é o conflito, a dor, a perda.

Ainda sobre humor, cabe aqui um pequeno apêndice. O humor é utilizado, aqui, de dois modos muito distintos: o primeiro deles acontece de modo nada natural: sequências pesadas, de muita descarga emocional, são interpeladas por alguma ou outra piada que não casam aquilo que o próprio filme propõe enquanto graça. Nesses momentos, além de não causar um efeito humorístico fortuito, também joga a grande tensão dramática por água abaixo. Em Tia Virgínia, essa ruptura não se encaixa. E não funciona justamente porque o modus operandi de seu humor é baseado no absurdo. É aqui que mora o grande mérito de Fábio Meira: pequenas performances humorísticas que culminam em um humor estranho, de riso difícil, misturado com preocupação.

Para manter o absurdo em dia, vemos diversos planos democráticos, como dira Bazin. O corte parece nunca vir. É agoniante ver algumas sequências de maior tensão sem nenhuma intrusão da montagem. Como dito antes, nada escapa da câmera e tudo é aquilo que é: nada é sugerido. Não se pode confundir isso com didatismo demasiado, de jeito algum. A imagem é clara e cristalina, mas a relação das irmãs transita entre amor e ódio, dor e acalento. Existe apenas uma sequência em que a câmera parece fugir, se esconder. Nesta cena, o diretor parece, por uma única vez, respeitar a intimidade das irmãs, que entre tapas e mais tapas vão em direção a um quarto desocupado e descontam fisicamente umas nas outras aquilo que vêm resguardando durante anos.

Uma das cenas finais é quase um filme à parte. Em meio à caótica ceia de Natal, Virgínia surge completamente maquiada e vestindo um beirando ao kitsch, com flores e plantas. Enquanto Valquíria tenta dizer algumas palavras sobre família, amor e carinho, Virgínia vai ao toca disco e coloca, no máximo volume, um sonoro bolero. Ela começa a dançar. E dançar. E dançar. Tudo em um belíssimo plano. E a dança continua de modo desengonçado, sem noção rítmica. Mas mesmo assim é bela. Vera Holtz consegue emular uma força performática próxima daquilo que Gena Rowlands produz em Uma mulher sob a influência. O balé atrapalhado de Virgínia vem junto de palavras fortes lançadas em direção ao restante da família. Atônitos, todos observam sem dizer nenhuma palavra. Essa falta de reação marca aquele humor absurdo antes citado. Lembra – e talvez eu me arrependa dessa conexão – um pouco do senso de humor de Toni Erdmann, construído a partir de performances patéticas de seus personagens.

Tia Virgínia pode se perder um pouco em algumas sequências que vão para o lado contrário do humor absurdo, mas definitivamente é um filme que, quando acerta, acerta forte. Arlete Salles e Louise Cardoso entregam sólidas atuações, mas Vera Holtz eleva (e muito) o nível do filme. Assim como Virgínia, Holtz é a dona absoluta do filme.

Tia Virgínia – Brasil, 2022
Direção: Fábio Meira
Roteiro: Fábio Meira
Elenco: Vera Holtz, Arlete Salles, Louise Cardoso, Vera Valdez, Iuri Saraiva, Daniela Fontan, Amanda Lyra, Antônio Pitanga
Duração: 97 min.

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