Home QuadrinhosArco Crítica | Thor: Primeira Aparição (Journey Into Mystery #83)

Crítica | Thor: Primeira Aparição (Journey Into Mystery #83)

por Giba Hoffmann
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No início dos anos 1960 a Marvel Comics encontrava-se em tamanho fervilhamento criativo que talvez seja justo dizer que nessa época, como em nenhuma outra, a editora fazia por merecer o título de “Casa das Ideias”. Após a publicação da bem sucedida primeira aventura do Quarteto Fantástico, a editora iniciou uma auto-decretada revolução nos quadrinhos que parece por vezes ter conseguido alcançar a magnitude das hipérboles descritivas de Stan Lee — o que sem dúvida quer dizer muita coisa.

Assim é que em 1962, ano seguinte à estreia da primeira família, Hank Pym se aventuraria no formigueiro, em um conto que posteriormente poderia ser relido como limítrofe entre os seriais de ficção científica e o renascente gênero super-heroico. Pouco tempo depois, ainda no primeiro semestre, as bancas receberiam a estreia do Hulk em revista própria, contando uma fascinante releitura de Dr. Jekyll & Mr. Hyde com um toque de ação explosiva. Mas quem imaginava que o lendário Bullpen já tinha entregado o que tinha para dar naquele ano haveria de se surpreender, já que em agosto estreava o Homem-Aranha, na edição final de Amazing Fantasy, enquanto que a edição de Journey Into Mystery nos apresentava simultaneamente ninguém menos que o poderoso Thor, “o super herói mais empolgante de todos tempos”, conforme nos informa a capa da revista.

Ao contrário de Hulk e do companheiro de estreia Homem-Aranha, que muito cedo em suas carreiras atingiriam um nível altíssimo de reconhecimento mundial, Thor foi um personagem que historicamente ocupou um lugar secundário no panteão dos super-heróis dos quadrinhos: certamente reconhecível mas ao mesmo tempo relegado às margens, atingira um patamar mais elevado de popularidade apenas recentemente, com sua encarnação no Universo Cinematográfico Marvel. Até então, o personagem manteve-se como uma figura de nicho nos quadrinhos, ganhando vida apenas nas longboxes dos entusiastas. E que vida!

É significativo que a estreia de Thor se dê na antologia Journey into Mystery. Inicialmente um periódico de horror, com o passar do tempo a revista recebeu também histórias de ficção científica, contos de monstros gigantes e tramas flertando com a fantasia. Em suma, um mosaico das tendências narrativas dos quadrinhos dos anos 1950, excluindo talvez apenas o faroeste. E todas essas correntes parecem confluir, senão de forma brilhante, no mínimo de maneira divertida na história de estreia do herói que viria a ocupar suas páginas e subsequentemente “roubar” a revista.

Thor, o Poderoso e os Homens Rochosos de Saturno tem um título digno de algum álbum que deriva rock progressivo clássico de alguma variação mais violenta do metal. É nessa toada que temos aqui um encontro seguro e consistente entre fantasia e ficção científica sessentista: o deus do trovão utilizando-se de seu poderoso martelo mágico para destruir alienígenas de pedra que intentam conquistar a Terra com sua tecnologia vastamente superior. Nesse sentido, a história combina um pouco de cada tempero das tramas que vinham sendo publicadas em Journey Into Mystery, resultando em uma deliciosa ficção pulp que usa o super-heroísmo mais como enquadramento do que como temática propriamente dita.

Que fique claro que se trata de um conto extremamente simples. Alienígenas rochosos (que lembram as estátuas Moais da Ilha de Páscoa, no sempre fantástico design de Jack Kirby)  chegam à Terra com intentos invasores, testando armas e cantando aos quatro ventos a vitória certa sobre os patéticos terráqueos. A única testemunha do pouso, um velho pescador norueguês, corre para buscar ajuda mas  é recebido com descrença pelos coabitantes da cidade. O médico norte-americano Donald Blake, curtindo suas férias na Noruega, ouve o bafafá e fica curioso a respeito da história relatada pelo velho.

Blake se mostra logo de cara um personagem bastante interessante. Muito bem retratadas no traço preciso de Kirby, sua postura e linguagem corporal denotam ao mesmo tempo fragilidade e firmeza. Aparentemente dando ouvidos ao apelo do velho pescador, o jovem médio ruma com sua bengala para o litoral, em busca da região relatada pelo velho. Lá encontra os terríveis homens rochosos, acaba chamando a atenção deles (clássica pisada no galho seco), se atrapalhando todo na tentativa de fugir. O cara perde a bengala, escalando com apenas uma perna as rochas úmidas e geladas da praia norueguesa. Essa cena por si só é capaz de provar o quanto uma adaptação desta origem tradicional do personagem traduziria bem para as telonas, por mais que o conceito do alter-ego de Thor tenha caído em desuso já há muito tempo.

É envolvente acompanhar a escapada do fragilíssimo Don Blake, que no desespero para fugir acaba se prendendo em uma caverna estreita e sem saída (sério, imagine que filme fantástico: 127 Horas só que, nas horas finais, James Franco descobre que é a encarnação do filho de Odin e sai arrebentando tudo com uma marreta celestial). Misteriosamente a parede se abre revelando… um galho em um pedestal. Poderia ser o martelo, mas é um galho. Claro que a ideia é a de que Blake possa utilizá-lo como bengala, mas neste sentido não é exatamente um disfarce insuspeito, já que não é uma bengala das mais discretas. De qualquer forma, Blake tenta utilizar a nova bengala como alavanca, sem sucesso. Em um acesso de fúria, bate com ela uma vez na pedra, liberando uma onda de energia que o envolve, transformando-no em nada menos que o Poderoso Thor!

A sequência de transformação é um destaque à parte. Magistralmente desenhada por Kirby, a cena faz o conhecido uso das cores e manchas de forma dinâmica e simples, mostrando de forma gradual a transição entre o magrelo Don Blake e o fantástico Thor. Após a transformação, a figura de Thor permanece envolta em sombras, suspendendo por mais um instante o mistério, que acaba enfim revelado de uma forma divertidamente boba, com a famosa inscrição no martelo, em inglês e na fonte de letramento de quadrinhos, informando-o de que se tratava o espetáculo. Nas recapitulações que aparecerão nas edições seguintes é inserido um interlúdio onde Blake visualiza Odin e recebe uma mensagem dele a respeito de sua responsabilidade para com o poder que acaba de receber. Porém aqui a coisa ainda é mais simples, com Blake rapidamente aceitando que agora ele se tornou Thor e colocando isso em uso para escapar da caverna e, quem sabe, defender a terra dos cidadãos belicosos de saturno.

 

Embora não sejam tratados de forma direta, já são observáveis aqui alguns dos temas relativos a essa primeira “origem” de Thor. No aspecto visual mais do que no roteiro, o contraste entre os pares fraqueza/responsabilidade e força/prepotência desta encarnação do deus do trovão já podem ser ao menos entrevistas, e a fuga da caverna funciona bem como metáfora a respeito da lição que Thor enfrenta com sua encarnação em Midgard, da qual ficaremos sabendo apenas mais adiante. Aqui temos Don assumindo a forma e força de Thor, porém sem trazer nada a respeito de suas memórias. O alter-ego diz respeito mais à forma do que à personalidade, sendo que aparentemente é Don quem permanece no controle.

Uma pena que a cena de saída da caverna encontre uma clara inconsistência na arte, onde somos apresentados a um traço que destoa bastante do de Kirby (muito provavelmente resultado do arte-finalista Joe Sinott auxiliando com o lápis), em detrimento da consistência interna da obra. Após uma rápida exploração de seus recém-adquiridos poderes, com níveis de detalhamento e explicação típicos da época (zZz), somos levados ao combate final. Apesar do ritmo excessivamente acelerado, o combate contra os homens de Saturno (que posteriormente seriam identificados como kronanianos) tem seus bons momentos, com a arte de Kirby trazendo à vida a dinâmica de luta do personagem pela primeira vez. Já temos Thor usando Mjolnir como propulsor para “voar” e o golpe giratório do martelo para “moer” os homens rochosos, por exemplo.

Os roteiristas Stan Lee e Larry Lieber ainda encontram tempo para uma captura em uma jaula metálica, a projeção de um dragão hologramático visando assustar os adversários humanos que se juntaram à luta e, por fim, um super-robô assassino que é rapidamente fulminado por um raio, encerrando o combate com a retirada dos alienígenas (que divertidamente entendem ser provável que os poderes de Thor sejam comuns entre os terráqueos). Levando em conta se tratar de uma história que no total tem a extensão de apenas 13 páginas, é surpreendente quantas ideias e cenas conseguem encontrar lugar na narrativa de forma satisfatória, um feito especialmente impressionante para uma era tão verborrágica. O combate aéreo das forças da OTAN contra as naves kronanianas, com a projeção do holograma de um dragão de design inconfundivelmente kirbyesco, representa talvez o melhor momento da batalha, em especial por simbolizar tão bem o encontro de magia e ciência, fantasia e sci-fi que o conto busca prover.

Unindo elementos narrativos de generos diferentes de forma inspirada, a história inaugural de Thor diverte mesmo sem contar com uma narrativa focada em personagem, como seria o caso com Hulk e o Homem-Aranha, por exemplo. De toda forma, temos um conto interessante e despreocupado, com todo o direito de ser reconhecido como icônico, onde já são plantadas as sementes para inúmeros desenvolvimentos do personagem.

Journey Into Mystery v1 #83, “Thor the Mighty and the Stone Men from Saturn!” (EUA, agosto de 1962)
Roteiro: Stan Lee, Larry Lieber
Arte: Jack Kirby, Joe Sinnott
Capa: Jack Kirby, Joe Sinnott
Editora: Marvel Comics
Editoria: Stan Lee
13 páginas

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