O diretor Akio Jissoji (1937 – 2006) ficou bastante conhecido no Japão por sua participação em episódios das clássicas séries Ultraman e Ultraseven, principalmente pela maneira diferente e inusitada os quais seus episódios eram gravados, abordando temas mais profundos do que os Tokusatsus da época permitiam. Dessa maneira, parece no mínimo curioso imaginar que esse artista, o qual também estava envolvido em outras produções infanto-juvenis, seja dono de uma obra autoral tão intensa e densa tendo o erotismo de base, como no caso de sua principal e mais reconhecida série de filmes, a trilogia budista, composta por Mujo (This Transiente Life, 1970); Mandara (Mandala, 1971) e Uta (Poema, 1972). A presente crítica se dedica a analisar exatamente o filme Mujo, o primeiro longa-metragem do diretor.
Mesmo não sendo um iniciante no audiovisual à época, percebemos nessa obra algumas poucas inconsistências de ritmo, contudo, a força do tema tratado (um caso de incesto), junto a bela simbologia existencialista alcançada tanto pelos enquadramentos, movimentos de câmera e montagem, tornam esse filme uma experiência sem precedentes. Assim, podemos afirmar que sua mise-en-scène transforma uma história relativamente simples em uma narrativa poderosa e incômoda.
Ironicamente, como veremos ao longo da película, Jissoji opta por beber na fonte lúdica e maneirista de certos diretores anteriores a sua época, como Kenji Mizoguchi, principalmente no que tange a fotografia e a montagem, em detrimento da toada mais realista que vinha sendo a tônica da Nuberu Bagu, a Nouvelle Vague japonesa, sem perder, contudo, os temas ácidos e corrosivos à sua sociedade (principalmente o tabu com a sexualidade) os mixando com temáticas puramente existencialistas, próprias da filosofia budista a qual ele teve contato.
No início da trama somos apresentados ao desiludido escultor Masao (Ryō Tamura) que apesar de desempenhar bem seu ofício parece insatisfeito não somente com sua vida, mas com a existência em si mesma. Aficionado pelo budismo, contudo, parece bastante descrente de qualquer possibilidade de redenção humana diante da vida e dos baixos instintos que assolam nossa existência. De forma a extravasar esses sentimentos caóticos de sua mente, ele se aproxima de sua irmã Yuri (Michiko Tsukasa) e mesmo reticente, a provoca de forma que ambos passam a ter relações sexuais de forma regular, até o ponto em que ela acaba engravidando. Posteriormente, Masao consegue convencê-la a transar com um dos criados da família, que sabidamente é apaixonado por ela, para fingir que o filho é dele e dessa forma obrigá-lo ao casamento. Manipulador e narcisista, o protagonista espelha a própria perversão às pessoas que passam pela sua vida. Seu único contraponto moral é o monge budista Ogino (Haruhiko Okamura) que apesar de pouco agir para parar o jovem escultor, passa a trama acreditando na capacidade de mudança do protagonista, inclusive o recomendando para o mestre Mori (Eiji Okada) que está esculpindo uma estátua de Kannon Bossatsu para o templo onde ele vive.
Na casa do mestre, contudo, Masao levará novamente a permissividade típica de sua existência sem sentido e niilista consigo, convidando Mori para uma estranha relação íntima junto dele e de Yuri. Nesse segmento da trama temos um dos momentos mais inquietantes do filme, no qual o protagonista diz que aqueles que não são dignos do estado dos Budas (ou de serem iluminados) os servem, esculpindo suas estátuas. Nessas poucas linhas de diálogo temos todo conformismo e melancolia do garoto para com a existência em geral.
Ao final da película, após o suicídio do marido de Yuri (que presenciou a incestuosa relação íntima dos irmãos acontecendo dentro de um tempo budista) e depois que sua estadia na casa do mestre Mori o leva a morte, Masso e Ogino debatem acerca de dois conceitos opostos, o do vazio e do nirvana, do inferno e do paraíso. O jovem escultor alega que após descobrir imagens do inferno budista (Jigoku) ficou horrorizado e passou a não entender os motivos e sentido da criação e da vida como um todo, decidindo, assim, negar o Buda, adotando uma vida dirigida apenas pelos prazeres sensoriais. Ogino, mesmo horrorizado, defende ainda a ideia do Nirvana, a possibilidade humana de superar e transcender o vazio da existência. Ironicamente, a estátua de Kannon Bossatsu que agora reside no templo foi feita, em partes, justamente por aquelas mãos impuras, incapazes de entender o significado da compaixão representada por essa deidade budista.
Como pontuado no início do texto, o filme possui problemas relativos a ritmo em vários pontos da trama, mas esses não são suficientes para desbotar a cinematografia da obra, que conta com suas composições de moldura, que simulam as prisões emocionais que cercam e torturam todos os personagens do drama; ou o uso de enquadramentos propositalmente desconfortáveis, com grandes áreas de vazio na composição; que ajudam a solidificar o simbolismo do envasamento emocional e de propósito não somente do protagonista, mas de toda uma geração nipônica: no início do filme vemos um homem bêbado que pensa ser um nobre samurai desafiando um grupo de jovens que acabam por espancá-lo, sem nenhuma compaixão. Nesse sentido, o autor nos apresenta um Japão cheio de vícios e incerto em como lidar com as contradições apresentadas pelos novos tempos de sua sociedade e das mudanças trazidas pelos loucos anos setenta.
This Transiente Life (Mujo, 無常) – Japão, 1970
Direção: Akio Jissoji
Roteiro: Toshirô Ishidô
Elenco: Ryō Tamura, Michiko Tsukasa, Haruhiko Okamura
Duração: 143 minutos