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Crítica | Theodorico, o Imperador do Sertão

Em exposição franca e livre, Coutinho abre total espaço para o universo de um coronel.

por César Barzine
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No documentário brasileiro é consolidada a tradição do estudo de personagem: em vez de fatos e fenômenos, o que é retratado é a subjetividade de alguma ou várias pessoas. A individualidade ganha espaço no lugar do mundo material e vira um íntimo universo em si mesmo. São inúmeros os casos de obras que mergulharam nessa abordagem, sendo Coutinho o principal representante dela. No entanto, se em trabalhos como Edifício Master e Jogo de Cena habitava uma inegável reverência aos seus personagens, o que existe em Theodorico, o Imperador do Sertão é um acertado afastamento. Uma distância que se faz necessária justamente por já ter em nós mesmos o repúdio à figura de seu protagonista, o coronel Theodorico Bezerra. Dado isso, não é preciso que Coutinho execute um tratamento valorativo ao seu objeto, pois cabe somente a nós fazer isso, já que tal objeto é terreno fértil  para aflorar os mais diversos juízos. Eduardo Coutinho  joga a posição crítica para o espectador, respeitando seu personagem — pois ele, por mais repudiável que possa ser em alguns momentos, ainda assim é digno de respeito — e, mais ainda, seu público.

Nada disso significa que o diretor busca  a imparcialidade, o que está em jogo é a honestidade e a seriedade artística e intelectual que jorra ao vermos tudo com naturalidade. É dessa  forma que o objeto de Coutinho torna-se sujeito, uma peça autônoma, livre e espontânea. Por virtude de tudo isso, nossos julgamentos acerca do objeto-sujeito acabam não sendo afastados, mas sim legitimados. É a partir da liberdade e do espaço obtidos por Theodorico que ele melhor pode expressar sua individualidade, alcançando, assim, algo mais próximo do seu real estado de ser. O distanciamento do diretor, portanto, abre um horizonte para o personagem, que se manifesta espontaneamente e, por fim, deixa o seu retrato mais próximo da legitimidade e da veracidade. Dessa forma, o espectador torna-se verdadeiramente crítico em seus juízos.

Existe, então, um perfeito encadeamento entre os três agentes de um trabalho documental: o criador, o objeto-retrato e o espectador. Esse  objeto, na condição recém-descrita, exerce um papel criativo maior do que poderia, mas isso só acontece em função do tratamento de seu criador — que não tem esse nome aqui à toa. O tratamento, nesse  caso, é tido como “não-tratamento”, porém não tem como contornar o papel ativo do diretor: trata-se, sim, de uma intervenção, uma abordagem para sua criação. No longa, essa abordagem se sustenta justamente por suas ausências: não há narração, ninguém da produção aparece — apesar do filme ser naturalmente de um programa jornalístico, o Globo Repórter —, a edição é silenciosa e a decupagem, opaca. O que vemos é, em boa parte do tempo, Theodorico falando. Coisa que ele faz incessantemente, tendo plena liberdade nas pautas e no conteúdo. Além disso, também vemos seus moradores-empregados e amigos fazerem o mesmo; contudo, sempre a respeito dele e em sua companhia.

Theodorico é algo onipresente no documentário; não só por ser seu tema, mas também por ser seu agente ativo. Daí vemos ele comentando/discursando de tudo um pouco: corpos femininos, trabalho, poligamia, socialismo, seus empregados, o povo brasileiro e, claro, sua vida. Nunca fala sem emitir juízos de valores gerais, o que faz do filme um caleidoscópio das visões daquele homem sobre o mundo, abrangendo desde trivialidades até grandes conceitos sobre o país e a vida. No entanto, o filme nunca digere esses conceitos, apenas dá luz a eles. Até porque é impossível não só discordar de muitas de suas visões, como também aceitá-las. A parte mais repugnante, entre  esses comentários, é quando ele difere preconceituosamente o povo do nordeste com o do sul-sudeste, tratando o primeiro como cheio de vícios e limitado, enquanto o segundo como virtuoso e ambicioso — em ambos os casos, tudo isso graças às origens de cada um (nativos, africanos, europeus e japoneses).

Como já dito, Theodorico transgride algumas convenções do gênero documental — não que ele esteja acima dele — e, como já comentado também, esse filme foi, antes de ser cinema, um produto da televisão. E dado que ele se destaca no documentário, pode-se reforçar ainda mais a mesma coisa quanto à televisão — nesse ponto podemos tranquilamente dizer que ele supera seu meio. Um filme que nos faz questionar a natureza de seus dois veículos (documentário cinematográfico e jornalismo televisivo) pelo simples respeito e autonomia cedido ao protagonista e ao espectador — em que o respeito e a autonomia do primeiro são a causa desses dois fatores no segundo. No entanto, o distanciamento do cinema e o esquematismo da TV não prendem a obra no quesito técnico, dando liberdade também para Coutinho ter o direito de manter a sua posição ativa por meio de alguns momentos do trabalho de decupagem. O melhor exemplo disso é o travelling que perpassa os habitantes do feudo de Theodorico enquanto este, de um jeito caricato, exalta aquele universo ao falar dos animais que lá vivem — “O travelling é uma questão moral“, já disse Godard. É um raro caso de expressiva manipulação por parte do diretor: o paralelo de um homem alienado por si mesmo e seus servos alienados por ele próprio.

Theodorico, o Imperador do Sertão — Brasil, 1978
Direção: Eduardo Coutinho
Roteiro: Eduardo Coutinho
Elenco: Theodorico Bezerra
Duração: 49 minutos.

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