“Eu sou o fim do mundo.”
- Observação: Há spoilers do episódio e da série. Leiam, aqui, as críticas de todas as demais temporadas, dos games e das HQs. E, aqui, da série spin-off, Fear the Walking Dead.
No segundo episódio de sua décima temporada, The Walking Dead atrasa passos posteriores para revisitar o passado que não contara. Mais especificamente, o enredo dos antagonistas principais da série ganha camadas extras, em meio a um episódio que, embora imperfeito, certamente tem questões interessantes a apresentar. Numa das conversas do capítulo de estreia deste ano de número dez, Aaron comentava com Michonne que, para os Sussurradores, eles seriam os vilões. Já, aqui, Alpha (Samantha Morton) reitera algumas das ideias desse seu grupo macabro – como por exemplo, aceitar que os mortos são os donos da Terra pós-apocalíptica, viver como eles e esquecer as ilusões de que o mundo passado poderá ser novamente como era antes. O jeito dos Sussurradores de viver não é, por isso, somente um projeto de selvageria, mas possui respaldo lógico. Angela Kang, a mente criativa por trás da temporada, em momento algum pensa em transmitir qualquer ambiguidade aos espectadores, porém – um ponto que Scott M. Gimple tentou com os Salvadores, quando Rick e companhia assassinaram pessoas que não apresentavam a menor ameaça para eles, pois encontravam-se dormindo. Em contrapartida a isso, o objetivo é tornar os Sussurradores, mesmo que permaneçam sendo verdadeiros vilões, cruéis, primitivos e desumanos, um grupo verossímil, com crises e, portanto, camadas, partes de uma cultura própria.
Por meio de uma estrutura de flashbacks contínuos, o episódio em questão apresenta um enfoque exclusivo nos antagonistas, caminhando entre os momentos que antecedem a queda do satélite, mostrada no capítulo de estreia da temporada, e as origens do modo de viver destes nômades. De qualquer forma, o propósito de Kang é enfraquecer a mística ao redor dos Sussurradores, que são postos à prova, seja seus líderes, seja seus seguidores. Uma das questões primordiais envolve o trauma que Frances (Juliet Brett) carrega após ter abandonado a sua criança – pois o bebê chorava incessantemente -, em um dos episódios da temporada passada. Por conta da desordem que permeia a mulher, o seu compromisso com o grupo torna-se cada vez mais questionável, o que a coloca em xeque com outro membro dos Sussurradores: sua própria irmã, interpretada por Thora Birch, e mais tarde apelidada de Gamma. O capítulo em questão, portanto, precisa trabalhar novas tramas, ao passo que também resgata anteriores, relacionadas a Alpha e sua filha Lydia, para criar uma conversa em conjunto – ou seja, uma coesão. Desse modo, os primeiros erros dos Sussurradores são exemplificados, em um episódio que principia as problemáticas a serem exploradas no núcleo deles. Num dado momento, por exemplo, alguns membros da comunidade são vistos conversando entre si acerca da vida em Hilltop – se sugere, por isso, rixas de ideologias.
Há uma quantidade excessiva de repetição nessa trama do presente, no entanto. E, para piorar a situação, o drama da mãe não convence como deveria, precisando se sustentar muito em cenas do passado para criar uma desordem emocional. Já no âmbito de Alpha, que também tem a noção de maternidade como cerne da sua trama, o peso da perda – por Lydia ter preferido morar com os demais sobreviventes em detrimento dos Sussurradores – é mais significativo. Cenas como a da mulher tratando Frances como uma criança explicitam o caos que ataca a personagem. Já os flashbacks em si, que recontam o primeiro encontro entre mãe e filha com Beta (Ryan Hurst), segundo em comando dos Sussurradores, são menos inspirados nesse sentido, com exceção daqueles segmentos que tangem o brutamontes. No caso, as dinâmicas entre Alpha e Lydia mostradas são reiterações de coisas que já vimos e, quiçá, uma simplificação nesse sentido terminasse sendo mais propícia para o conjunto. Lydia, por exemplo, não é importante para o episódio como personagem por si só – o seu arco não possui mais correlação alguma com a doutrina dos Sussurradores. O importante é o seu relacionamento com a sua mãe, mas partindo do ponto de vista da mãe, e o quanto isso enfraquece-a. Beta, por sua vez, é manejado de maneira mais precisa, especialmente pela interpretação ameaçadora de Hurst, revelando monstros íntimos.
Nisso tudo, o ponto que mais chama atenção é que, se para revirar o status quo de personagens já consolidados eles precisam perder um pouco de sua humanidade, o twist com os Sussurradores tem a ver com a ruptura na desumanidade deles – o oposto. Logo, os deméritos deles, que são propostos por uma doutrina muito particular, residem em seus sentimentos, como o medo e como o arrependimento. Quiçá o começo do fim para o grupo se dê, consequentemente, pela permissão do seu líderes a passos em falso. Quando Beta enfim percebe que Alpha não conseguiu executar Lydia, o passado se une ao presente, em meio a um paralelismo. No primeiro encontro entre os personagens, Beta era a pessoa transtornada, enquanto, agora, Alpha se encontra da mesma maneira. É instigante imaginar o que demais membros dos Sussurradores fariam se descobrissem que a comandante da alcateia não cumpriu com a sua obrigação – justo Gamma pode ser esse contraponto, enquanto Beta, por ter uma proximidade com a mulher, um ponto de resistência. O curioso é que tais “transtornos”, impasses imperdoáveis dentro de uma sociedade como a dos Sussurradores, são justamente pontos de humanização destas criaturas. Beta e Alpha nunca foram tão próximos, a exemplo. Mesmo em um ambiente onde a moral destas pessoas é questionada, os elementos mais animalescos – a máscara de pele morta – possuem seus correspondentes íntimos.
The Walking Dead – 10X02: We Are the End of the World — EUA, 13 de outubro de 2019
Showrunner: Angela Kang
Direção: Greg Nicotero
Roteiro: Nicole Mirante-Matthews
Elenco: Samantha Morton, Ryan Hurst, Thora Birch, Juliet Brett, Havana Blum, Lauren Ridloff
Duração: 60 min.