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Crítica | The Undoing

por Leonardo Campos
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Um assassinato violento. Uma família aparentemente perfeita em crise. Um suspeito inicial e reviravoltas que nos colocam diante da dúvida em torno da identidade do assassino. Elenco de luxo e construção narrativa sofisticada, produzida pelo selo HBO de qualidade. Essa pode ser uma das apresentações básicas para o drama The Undoing, minissérie em seis episódios carregada por uma atmosfera densa, com argumento simples, mas muitas camadas de reflexão social por debaixo de sua superfície estilosa. Criada por David E. Kelley, também responsável pelo roteiro, os seis episódios foram dirigidos com firmeza por Susanne Bier, gerenciadora desta trama que dialoga com uma vasta fonte de tópicos contemporâneos para pensarmos a instituição da família enquanto unidade em erosão, o privilégio branco associado ao status social, a desconstrução da vítima e do suspeito face ao falso sentimento de imparcialidade da justiça, bem como a exposição da intimidade numa cultural apaixonada pelo espetáculo em torno da desgraça alheia. Revestida por um verniz soturno, a série é um convite para pensarmos a confiança que depositamos no “outro” e como por detrás de estruturas coesas pode haver uma base sem sustentação, minada pela ardilosa coexistência de nossos instintos sufocados pela civilização.

Com desfecho polêmico e compreendida inadequadamente por algumas pessoas como um programa de suspense sobre a busca pela real identidade de um assassino, caminho trivial que a série flerta, mas subverte em seu desenvolvimento, The Undoing deflagra o esfacelamento de uma família face ao adultério, ainda tendo uma situação de violência como completo trágico para devastar as relações anteriormente embasadas em certezas e sem desconfianças. Baseada no romance You Should Have Know, o programa nos mostra o Dr. Jonathan Fraser (Hugh Grant), renomado oncologista casado com a igualmente respeitada Grace Fraser (Nicole Kidman), uma terapeuta especializada em atendimento de família e casais. Eles são pais de Henry Fraser (Noah Jupe), um jovem adolescente exemplar, inteligente, amante da música, educado numa das instituições mais sofisticadas do país. É um núcleo estilo Manoel Carlos nas novelas brasileiras, de pessoas elitizadas e privilegiadas socialmente, com problemas de gente branca e pequenas intercorrências diárias até o dia que um assassinato bastante violento vai extraindo aos poucos qualquer sensação de paz e tranquilidade desta família. A catalisadora disso tudo é a vítima, a enigmática Elena Alves (Matilda de Angelis), enraizada ao longo dos episódios por meio de diversos flashbacks que revelam as coisas em doses, digamos, homeopáticas.

A produção da HBO, exibida em seis episódios durante os meses de outubro e novembro de 2020, trouxe estruturas narrativas com média de 52 minutos, com exceção do final, na casa dos 67 já com os featurettes após os créditos, com o elenco a comentar a cena da ponte e as escolhas dramáticas do desfecho. Tudo começa com a apresentação dos personagens principais. Nicole Kidman brilha e desliza soberba por cada cena, transmitindo segurança no desenvolvimento de Grace Fraser, uma mulher culta, forte, bem-sucedida profissionalmente, capacitada para realizar a sua função de terapeuta cotidianamente, dando aos casais que atende o suporte e a possibilidade de reflexão em torno de suas relações conturbadas. Interessante é que essa postura firme se perde quando ela descobre que Elena Alves, a mãe de um dos alunos que estuda na mesma escola de seu filho, foi assassinada. Isso depois que conhecemos a personagem rapidamente numa reunião de mãe do conselho de projetos escolares, trecho que já demonstra o incomodo causado pela moça, uma mulher tratada com cortesia por Grace, mas vista como invasora, alguém que não pertence ao elitizado círculo daquelas mulheres.

Importante ressaltar que antes da morte, Grace e Elena tiveram um breve momento durante um evento. Flashbacks nos mostram que as duas mantiveram alguma breve linha de diálogo em situações numa sauna e passagens bem corriqueiras, mas nada substancial para nos fazer ter certeza que a Dra. Fraser seja a assassina de Elena. O leitor pode se perguntar por qual motivo a terapeuta mataria a personagem, adianto-lhe então que há vários. Primeiro, após o choque em torno das notícias do crime e de sua descrição brutal perpetrada pela mídia, descobrimos que a moça tinha um caso com o Dr. Jonathan Fraser. Isso mesmo, o marido de Grace. É quando começa toda a destruição de relacionamentos e esfacelamento de uma família digna para estampar uma releitura de Norman Rockwell. Amante da jovem, também descobrimos junto com Grace que o caso deles causou a demissão do oncologista, já afastado de suas atividades no hospital há bastante tempo, informação que a personagem de Nicole Kidman descobre depois que seu marido se torna o principal suspeito. O espiral que beira ao insano começa assim e vai deslocando outras falácias na vida do casal, escondida nas zonas mais abissais de um casamento construído em torno de muitas mentiras. Constantemente perseguida pela polícia, inclusive em depoimentos ilegais, sem ser devidamente indiciada e ter um advogado presente, Grace passa de vítima da situação ao posto de possível criminosa. Pode ou não ser dela a assinatura da morte brutal, como também há a possibilidade de ser cúmplice do marido.

A arma do crime, reforçada constantemente, um martelo que estabelece estragos consideráveis em sua vítima, é encontrada num dos episódios próximos ao final. É o momento de julgamento e o Dr. Jonathan Fraser, inicialmente fugitivo, capturado posteriormente e depois solto com fiança. Ele recebe todo apoio da família, inclusive da esposa, perturbada diante dos acontecimentos. As coisas mudam de lugar depois que Grace, abalada com a situação, acha a prova do crime na caixa do violino de seu filho. Terá sido o jovem garoto a pessoa responsável pelo crime? Teria ele matado Elena Alves para vingar a traição do pai? Dúvidas surgem o tempo inteiro e essa colcha enredada por mistérios cumpre o papel de gancho para manter os espectadores atentos e associados aos dramas que se desdobram a cada episódio. Há um número pomposo de reviravoltas e mesmo que não seja essa a proposta em The Undoing, isto é, brincar com o público em torno da identidade do assassino, a estratégia funciona como uma boa escolha na seara do entretenimento. É uma fórmula eficiente para levantar indagações e questionamentos enquanto os temas voltados para o lado sociológico se enraíze por toda a série como um rizoma, espalhando-se num feixe de situações que refletem de maneira muito atual alguns modelos de relacionamentos humanos e de condutas, além de discutir sabiamente tópicos caros ao nosso cenário político contemporâneo, tais como ética, alpinismo social, o papel da mídia na interpretação de casos polêmicos, dentre outros assuntos que regem o nosso cotidiano.

Outro ponto que torna a série interessante é o desenvolvimento do bom arsenal de coadjuvantes. O poder persuasivo da polícia encontra eco no desempenho dramático de Edgar Ramirez, excelente como o detetive responsável por investigar o caso. Ele cerca constantemente Grace Fraser para tentar tirar informações até mesmo de maneira ilegal, deixando-a ainda mais desesperada dentro da situação adversa na qual foi mergulhada. Mendoza, juntamente com o policial Paul O’Rourke (Michael Devine), cerceia a terapeuta deliberadamente, em momentos que beiram ao explosivo e nos deixam diante de muitas dúvidas. Será que Grace de fato matou a amante de seu marido? Ela sabia do caso e está nos enganando? Nós, bem como os policiais, ficamos diante destas incertezas a todo momento. E isso tudo é construído em paralelo as expectativas de nós espectadores, tão leigos diante da realidade, tal como a polícia e boa parte dos demais personagens, dentre eles, o Franklin Reinhardt (Donald Sutherland), o pai de Grace; a advogada Haley Fitzgerald (Norma Dumezweni), firme e sagaz; Sylvia Steineitz (Lily Robe), amiga da Dra. Fraser e com posturas que nos deixa desconfiar de sua conduta o tempo inteiro, haja vista a possibilidade de haver mais coisas escondidas em torno de sua personagem; Miguel Alves (Edon Alexander), o filho da vítima, menino que encontra a mãe morta no local do crime; e Fernando Alves (Ismael Cruz Cordova), marido da moça, talento que supera a sua beleza imponente, mostrando-o como uma das forças motrizes no desenvolvimento dramático de The Undoing, um homem cheio de motivações para ser também um suspeito.

Além de discutir bem os seus temas, a série entrega, como mencionado antes, episódios num invólucro luxuoso. Na direção de fotografia, Anthony Don Mantle emprega um tom obscuro, com iluminação parca nas cenas noturnas, ideal para ampliar a atmosfera de mistério pretendida, complementada com os efeitos visuais, responsáveis pelos relâmpagos e outros fenômenos para instaurar as respostas de ordem natural no processo metafórico de representação dos conflitos dramáticos retratados. Os planos mais fechados e o uso de alguns closes delineiam os momentos de maior intensidade, empregados sem nenhuma aleatoriedade, o que faz da estética da série um grande acerto, também em seu design de produção, assinado por Lester Cohen. Gestor dos cenários de Keri Lederman e da direção de arte de Doug Hustzi, o setor entrega espaços deslumbrantes e volumosos para a fotografia fazer o seu trabalho, além de termos os figurinos de Signe Sejlund como um dos tópicos visuais mais comentados sobre a série na internet. Os casacos trajados por Nicole Kidman na composição de sua personagem fizeram a festa dos apaixonados por moda. Cabe ressaltar, por sua vez, que os figurinos vão além de qualquer afetividade ou superficialidade e ajudam bastante não apenas a protagonista, mas as demais figuras ficcionais em The Undoing, a desenvolverem as suas personagens. A dupla Sacha e Evgueni Galperini entrega uma trilha sonora imersiva, o que torna a sensação de mistério e o clima de apreensão dos episódios, tributários da composição musical assertiva, com destaque para a canção da abertura, cantada por Kidman, também produtora executiva do programa.

Sempre muito engajada em seus projetos e talvez a melhor atriz de sua geração, a australiana mergulha com afinco no projeto e entrega mais um desempenho dramático coeso, firme, digno de seu talento. Numa época como a nossa, tomada pelos desdobramentos do movimento MeToo, sacolejante desde 2017, além de absurdos como a humilhação pública e vergonha para o campo do Direito no Brasil, face ao caso de Mariana Ferrer e o tal “estupro culposo”, bombardeado nas redes sociais em opiniões extremistas e depoimentos politizados coerentes, projetos como The Undoing, responsáveis por deflagrar determinados privilégios raciais, sociais e a desconstrução pública da vítima e do algoz na cultura da mídia, tornam-se importantes para a veiculação de entretenimento com doses consideráveis de crítica social. Uma atriz da envergadura de Nicole Kidman, ao se interessar por trabalhos do tipo, permitem que questões fundamentais seja discutida no entretenimento televisivo, massivo, vantajoso para o avanço de uma sociedade mais conscientizada, mesmo que tudo isso ainda seja muito pouco para chegarmos ao ideal. Ademais, não espere por um desfecho muito surpreendente. As respostas estão panorâmicas desde o começo e o interessante da série não é brincar de quem é o criminoso, mas de discutir uma série de celeumas enquanto nos entretemos tentando desvendar a identidade do assassino de Elena Alves, uma figura que gera obsessão e inquietude por todos os seus poros, em cada que é contemplada no enquadramento.

The Undoing (Idem, EUA – de 25 de outubro a 29 de novembro de 2020)
Showrunner: David E. Kelley
Direção: Susanne Bier
Roteiro: David E. Kelley (baseado em romance de Jean Hanff Korelitz)
Elenco: Nicole Kidman, Hugh Grant, Edgar Ramirez, Michael Devine, Noah Jude, Lily Robe, Donald Sutherland, Ismael Cruz Cordova, Norma Dumezweni
Duração: 52 min. aprox. cada episódio (seis episódios no total)

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