Home TVMinisséries Crítica | The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade

Crítica | The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade

por Ritter Fan
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Barry Jenkins usa a câmera como seu pincel, deixando-se levar por construções narrativas que transformam a realidade em impressões da realidade, em quadros que conseguem retratar a dor, o preconceito, e as profundas cicatrizes que resultam daí de maneira belíssima, mas sem retirar ou mesmo diminuir o impacto do que ele aborda. Foi assim em Moonlight: Sob a Luz do Luar, uma obra sobre o amadurecimento dentro da inescapável prisão da cor da pele e da sexualidade, foi assim com Se a Rua Beale Falasse, uma história de amor em que passado e presente se chocam e é assim com The Underground Railroad, adaptação em forma de minissérie do romance homônimo de Colson Whitehead, publicado em 2016, que ganhou o sempre desnecessário subtítulo Os Caminhos para a Liberdade por aqui.

Desta vez, o cineasta teve uma tela muito maior para pintar e, ao que tudo indica, completa liberdade em como fazê-lo, já que a própria estrutura da minissérie, com episódios em muitos aspectos autocontidos, alguns com duração quase de um longa-metragem, outros tão curtos quanto 20 minutos, mas todos contando a saga da escrava Cora (a sul-africana Thuso Mbedu) em sua fuga de uma fazenda algodoeira na Georgia, sendo perseguida implacavelmente pelo caçador Arnold Ridgeway (Joel Edgerton) e seu assistente mirim Homer (Chase W. Dillon). Jenkins cria uma obra difícil de assistir, mas não apenas pela temática que, claro, leva a diversas sequências de revirar o estômago, mas talvez principalmente pela abordagem ao mesmo tempo onírica e lírica que exige do espectador um estado de espírito contemplativo, sem pressa de chegar ao final (foi um erro enorme do Prime Video lançar essa minissérie de uma vez só, já que ela definitivamente não é afeita a binge watching), algo que é cada vez mais difícil encontrar.

Essa escolha do diretor se dá pela estrutura do próprio romance que ele adapta, já que seu autor criou não uma obra de História Alternativa como alguns tentam classificá-la, mas sim algo mais afeito ao realismo mágico, ou seja, uma extrapolação de fatos reais com um verniz, hummm, diferente que por vezes resvala no sobrenatural, ainda que de sobrenatural a obra nada tenha. O maior exemplo disso é justamente a “ferrovia subterrânea” que é usada como título. Na vida real, ela existiu efetivamente, mas não como uma ferrovia propriamente dita, mas sim como uma rede formada por centenas de abolicionistas que, ao longo de décadas no século XIX, conspirou para libertar milhares de escravos do sul escravagista dos EUA. No livro – e, portanto, na minissérie – essa rede é mesmo uma ferrovia subterrânea, completa com trem de passageiros, estações e livros para registrar quem embarca. Mas não é apenas essa liberdade que o livro e a obra de Jenkins toma com a liberdade, já que, na medida em que Cora avança por diferentes estados americanos, ela se depara com estruturas e organizações que jamais existiram como mostradas, mas que, na prática, são baseadas em fatos.

É essa “fuga da realidade” nua e crua que permite que Jenkins faça o mesmo em termos de passo e de visuais. Como disse, a dor, o preconceito e a violência estão muito presentes, mas Cora, que segue os mesmos passos de sua mãe Mabel (Sheila Atim), que fugira seis anos antes abandonando-a na fazenda, o que explica a obsessão de Ridgeway, passa por um processo lento, claudicante e cheio de revezes de “re-humanização”, em que ela começa a perceber que não é uma coisa, uma propriedade, mas sim um ser humano, conceito que, para ela, que nasceu presa aos grilhões da escravidão, sequer consegue começar a entender. Nesse aspecto, aliás, a interpretação de Mbedu é assustadora, com a atriz construindo uma personagem que diz tudo o que sente e pensa apenas com o olhar, uma adolescente ainda (e a atriz tem 30 anos!) que carrega o fardo do abandono maternal cumulado com uma vida inteira de tortura, violência, abuso e estupro e que só vê o mesmo ao seu redor com seus pares.

Ao criar uma atmosfera do que poderia chamar de fábula – mas daquelas originais, pesadas e não aguadas para o público infantil – Jenkins permite que Cora expanda seus horizontes e veja um mundo que ela não faz ideia que poderia existir e que, em muitos aspectos, não é lá tão melhor do que o que ela nasceu. Em termos técnicos, o que o cineasta coloca na telinha chega a ser até um crime que seja feito para a telinha. The Underground Railroad é monumental em elenco, cenários variados, figurinos, a fotografia inacreditável de James Laxton e a trilha sonora arrebatadora de Nicholas Britell, ambos já parceiros de Jenkins. E a arquitetura sonora? Eu poderia fazer uma crítica inteira sobre a mixagem e edição de som nessa série, pois há muito tempo não ouvia tanto cuidado, tanto detalhismo e tanto uso de sons para amplificar uma história como ouvi aqui ao longo das quase seis horas de projeção, graças ao trabalho de Onnalee Blank e sua equipe mágica. O som da madeira queimando quando os personagens passam por uma floresta em chamas, o som de grilos e outros insetos tomando completamente o áudio em determinadas sequências, o farfalhar de tecido, os cães de armas sendo puxados, o horrível estalar de chicotes, o clop clop dos cavalos, tudo cria um universo sonoro indescritível que faz muito para aprofundar o mergulho do espectador na dolorosa jornada de Cora que ainda conta com um surpreendente episódio dedicado integralmente ao caçador de escravos em que Edgerton se agiganta com o espaço que ganha em um papel que deve ter sido dificílimo para ele fazer.

The Underground Railroad é uma daquelas raras minisséries que, quando acaba, pouco importando o tempo que alguém leva para ver, o espectador está ao mesmo tempo exausto, demolido, realmente desnorteado, mas ao mesmo tempo feliz por ter visto uma obra-prima. Não é de forma alguma uma obra que torna fácil a repetição da experiência sem um longo intervalo, mas é por deixar sua profunda marca – como nas costas dos escravos – que ela mostra seu valor e inestimável poder. Barry Jenkins definitivamente pintou um quadro monumental com sua câmera pincel e quem o vir não sairá incólume.

Obs: Jenkins lançou, na plataforma Vimeo, um “episódio extra”, por assim dizer, batizado de The Gaze – ou O Olhar, em tradução direta – que é outra experiência desconcertante que merece ser conferida logo abaixo:

The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade (The Underground Railroad – EUA, 14 de maio de 2021)
Desenvolvimento: Barry Jenkins (baseado em romance de Colson Whitehead)
Direção: Barry Jenkins
Roteiro: Barry Jenkins, Jacqueline Hoyt, Nathan C. Parker, Allison Davis, Adrienne Rush, Nathan C. Parker, Jihan Crowther
Elenco: Thuso Mbedu, Joel Edgerton, Aaron Pierre, William Jackson Harper, Sheila Atim, Peter de Jersey, Chukwudi Iwuji, IronE Singleton, Chase W. Dillon, Fred Hechinger, Peter Mullan
Duração: 593 min. (10 episódios)

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