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Crítica | The Third Day

por Ritter Fan
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The Third Day transformou-se em uma jogada de marketing ao tentar ser uma experiência televisiva multiplataforma com duas trincas conectadas de episódios, mas cada uma focada em um personagem principal, separadas por um live transmitida em redes sociais por 12 horas ininterruptas e em apenas um plano sequência. Estranho sem dúvida, e uma curiosidade. Felizmente, porém, o mais recente projeto de Dennis Kelly, responsável por Utopia, em parceria com Felix Barrett, da companhia teatral Punchdrunk em seu primeiro projeto audiovisual, é mais do que uma novidade modernosa sem maiores significados.

A premissa é curiosamente baseada em fatos reais, já que a Ilha de Osea, localizada no estuário do rio Blackwater, em Essex, no leste da Inglaterra, realmente existe e ela realmente é conectada à margem por uma estrada sinuosa que só aparece em maré baixa. Além disso, ela foi de propriedade de Frederick Nicholas Charrington, herdeiro de uma família cervejeira milionária que abriu mão da fortuna para criar uma clínica de tratamento de vícios na ilha, resultando em uma espécie de culto. E, como se isso não bastasse, Charrington foi mesmo um dos investigados pela Scotland Yard por suspeita de ser Jack, o Estripador. Em outras palavras, a realidade decididamente é mais estranha que a ficção.

O que Kelly faz com essa base histórica é, nos primeiros três episódios, batizados conjuntamente de Parte 1: Verão, é levar Sam, vivido por Jude Law, até o bizarro local depois que ele salva a vida de uma jovem de lá que tenta enforcar-se próximo de onde ele estava. O que Sam fazia ali e como tudo se encaixa com Osea, que está prestes a ter seu festival anual com música e fogos, é algo que os roteiros vão vagarosamente levando o espectador a descobrir. Mas o aprofundamento no tormento passado do personagem e a forma como é feita a conexão com a ilha e seus habitantes é um mistério, digamos, “comum” na televisão moderna e decididamente não é isso que contribui para elevar The Third Day acima de tantas outras ofertas parecidas.

O que torna a minissérie diferente e, diria, hipnotizante, é a pegada autoral que Kelly muito claramente imprime em sua obra, criando uma atmosfera inamistosa, mas curiosa; inicialmente apenas estranha, mas cada vez mais claustrofóbica na medida em que progride passo a passo, sem pressa em uma espiral que envolve o processamento de luto, a forma como cada um lida com a culpa, a busca obsessiva por felicidade e, claro, a onipresença do fanatismo religioso. Apenas a menção a essa última expressão é capaz de levantar os cabelos da nuca de qualquer ser pensante dado o quanto a História já nos mostrou – e continua mostrando – como isso pode ser insidioso. E a construção de toda essa atmosfera, além das presenças de Paddy Considine e Emily Watson como Sr. e Sra. Martin, donos da estalagem local e os demais membros do elenco que vão aparecendo aqui e ali contribuindo para o mistério e para a claustrofobia, são essenciais para que a história funcione de verdade, já que não há ação propriamente dita, apenas um redemoinho de emoções que primeiro não queremos nos aproximar, mas que, depois, torna-se irresistível.

Finda a Parte 1, entra então a experiência sensorial ao vivo capitaneada pela Punchdrunk, sem dúvida um feito técnico impressionante batizada da Parte 2: Outuno. E, antes que me perguntem, eu não assisti as 12 horas de performance ao vivo, mas eu aplaudo quem porventura tenha feito isso (ainda que eu me reserve o direito de duvidar da sanidade dessas pessoas, he, he, he…). Assisti, apenas, algo como duas horas espalhadas entre o começo (meia hora), final (meia hora), com a hora restante distribuída em grupos de cinco minutos ao longo do restante do dia, somente para ter uma ideia da estrutura da coisa e de como tudo foi executado. É algo definitivamente assombroso que serve, claro, para um mergulho profundo na proposta, mas que definitivamente não afeta a experiência de assistir o restante sem acompanhar a live. Como disse, é uma curiosidade midiática, uma forma de ganhar o selo “sou moderno e ousado”, mas, assim como o filme sueco de 35 dias de duração, não passa disso.

Quando a série retorna ao planeta Terra, alguns meses se passaram desde o terceiro capítulo da Parte 1 e entramos finalmente na Parte 3: Inverno, em que somos imediatamente apresentados a Helen (Naomie Harris) e suas duas filhas, Ellie (Nico Parker) e Talulah (Charlotte Gairdner-Mihell) que, claro, estão alegremente dirigindo até Osea. Quem elas são é de facílima dedução, mas não entrarei no terreno dos spoilers aqui. O que interessa é que existe uma conexão entre as histórias e a ilha, agora, encontra-se em total decadência, estabelecendo imediatamente uma atmosfera pesada, opressora, como se Helen e suas filhas estivessem literalmente entrando no Inferno.

O que era razoavelmente mais contemplativo na Parte 1 ganha uma pegada mais forte de horror psicológico, com os habitantes da ilha divididos em duas facções e Helen, que leva as filhas até lá sob a desculpa de comemorar o aniversário de Ellie, começa a entender o que está acontecendo ao seu redor. Com crianças mais abertamente no jogo, os roteiros não perdem a oportunidade de usá-las para intensificar o medo, com as duas atrizes mirins muito bem em seus papeis e com o fanatismo religioso ganhando contornos mais explícitos e doentios.

Harris, porém, é a grande estrela, diria até mesmo melhor que Law, ainda que as exigências dramáticas sejam bem diferentes. Seja como for, é palpável o labirinto tanto físico quanto psicológico em que ambos personagens entraram e que, em uma versão macabra que reúne O Anjo Exterminador com O Homem de Palha, não conseguem/querem sair, algo que é amplificado por um trilha sonora quase alucinógena e uma fotografia dessaturada, mas que trafega muito bom em alterações tonais em uma ambientação propositalmente feia, acabada, um reflexo de um lugar que talvez, um dia, antes da corrupção moral generalizada, tenha sido bonito.

The Third Day não é fácil de assistir – mesmo ignorando a live de 12 horas, essa, pelo menos para mim, impossível de assistir -, até porque lida com assuntos pesados, tristes e assustadores mesmo, mas Dennis Kelly entrega mais uma obra de alta qualidade que desafia rotulações e deixa o espectador inquieto a cada novo episódio. Essa é a vantagem de um projeto que sabe se vender pela curiosidade da premissa e prender pela execução primorosa.

The Third Day (EUA/Reino Unido, 14 de setembro a 19 de outubro de 2020)
Criação e desenvolvimento: Felix Barrett, Dennis Kelly
Direção: Marc Munden, Felix Barrett, Philippa Lowthorpe
Roteiro: Dennis Kelly, Felix Barrett, Kath Duggan, Emily Mytton, Kit de Waal, Dean O’Loughlin
Elenco: Jude Law, Katherine Waterston, John Dagleish, Mark Lewis Jones, Jessie Ross, Richard Bremmer, Paddy Considine, Emily Watson, Freya Allan, Börje Lundberg, Florence Welch, Paul Kaye, Naomie Harris, Nico Parker, Charlotte Gairdner-Mihell
Duração: 351 min. + especial ao vivo de 12 horas (seis episódios intervalados por um especial ao vivo)

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