Não escuto muito audiodrama, mas comprei de reflexo a produção da Audible de The Sandman, primeiro por ter lido que Neil Gaiman estaria por trás da obra e, segundo, porque fiquei curioso demais para ver como seria o resultado da proposta. No entanto, não li mais nada sobre o audiodrama e esperava uma história nova ou uma versão diferente de obras clássicas de Gaiman. Quando comecei a escutar, reconheci de imediato que estava ouvindo algo que se parecia com o início de Prelúdios e Noturnos e, na medida em que a minutagem avançava, notei que não estava escutado algo que se parecia com Prelúdios e Noturnos, mas sim exatamente Prelúdios e Noturnos.
E que surpresa boa!
Como amador em audiodrama – tendo apenas escutado os dois do Wolverine, que são histórias originais criadas especificamente para o formato – jamais imaginaria que uma HQ pudesse ser tão perfeitamente transplantada para áudio, muito menos uma HQ tão complexa, tão nuançada e tão sensacional como é a versão de Sandman de Gaiman (digo versão, pois o primeiro personagem a chamar-se Sandman foi outro, bem diferente e bem mais antigo, da Era de Ouro dos quadrinhos). Mas é exatamente isso que acontece na obra de mais de 11 horas que escutei, adaptada e dirigida por Dirk Maggs, com produção executiva Gaiman que, também, empresta sua voz como narrador: uma transição elegante, sofisticada e absolutamente hipnotizante dos três primeiros arcos de The Sandman, ou seja, o já citado Prelúdios e Noturnos, além de A Casa de Bonecas e Terra dos Sonhos, para o formato de aúdio.
Não pretendo, aqui, abordar o mérito dos arcos das histórias, pois essa é a tarefa de meu colega Luiz Santiago, que teria uma síncope nervosa se eu assim fizesse. Portanto, meu objetivo é, apenas, falar do trabalho de transposição para áudio que já classifiquei como perfeito, mas não disse o porquê. Aliás, é importante dizer que, quando encaro uma adaptação, espero – e quero! – alterações no conteúdo para um melhor aproveitamento em nova mídia. Para mim, a tendência é que, na medida em que o material adaptado se aproxima de forma subserviente ao original, ela fique pior, mas há exceções e o audiodrama de The Sandman definitivamente é uma delas. O que Maggs fez, provavelmente com ajuda de Gaiman, está mais para a pura transposição do que uma adaptação verdadeira, mas, na verdade, trata-se de uma meio termo, já que efetivamente houve alteração textual para que quadros de narração, balões de pensamento e balões de diálogo ganhassem ao mesmo tempo mais fluidez e mais pistas auditivas do que é o que em forma de narração mais extensiva, evitando embaralhamento e, também, a impressão de estarmos escutando um texto em prosa lido por diversos atores de voz (como acontece em alguns audiolivros).
Falando nos atores, as performances deles são realmente impressionantes, valendo especial destaque para James McAvoy como Morpheus, com o ator trabalhando um tom de voz suave, mas forte e etéreo, capaz de explodir em momentos importantes. Kat Dennings como Morte é outro achado, assim como são Riz Ahmed como o sinistro Coríntio, Taron Egerton como o debochado John Constantine, Michael Sheen como o poderoso Lúcifer e basicamente todos os outros. A modulação das vozes existe, mas elas não retiram os timbres e inflexões dos atores, apenas fazem as vozes encaixarem-se melhor nas características de cada personagem e nos respectivos ambientes, sejam eles mais terrenos ou mais sobrenaturais, com um minucioso trabalho de sincronização dos diálogos e narração com os efeitos sonoros e a trilha sonora.
A mixagem e edição de som, assim como a trilha composta por James Hannigan são, no final das contas, os elementos que realmente permitem a completa imersão nesse universo de fantasia criado por Gaiman. Sem eles, muito da força e qualidade do audiodrama se perderia ou seria transformado em algo mais genérico. É, por assim dizer, o equivalente, em audiodrama, da arte das HQs, evidentemente em falta aqui. Com esse trabalho irretocável, é perceptível, por exemplo, a claustrofobia do interior da mansão onde Morpheus inicialmente fica preso por décadas, assim como é a evolução da macabra sequência no restaurante 24 horas em que as pessoas são controladas por John Dee (William Hope) e a sensação de imensidão do Inferno. Claro que nada efetivamente consegue substituir a arte dos quadrinhos em seu papel de criar atmosfera de horror, mas diria que o audiodrama consegue ser uma segunda opção que surpreendentemente se aproxima bastante.
Não sei se alguém que nunca tenha lido o Sandman de Gaiman conseguirá apreciar o audiodrama no mesmo nível de quem leu, mas tenho para mim que isso seja possível sim, já que todas as informações necessárias estão lá e a progressão narrativa se segure muito bem ao longo das várias horas de êxtase auditivo. Uma vez mergulhado na audição, com o devido grau de atenção (e é necessária a atenção mesmo para quem já leu os quadrinhos), os três arcos iniciais de The Sandman, que formam um macro-arco completo, funcionam como em um passe de mágica. Mas, claro, isso não quer dizer que o audiodrama deva substituir os quadrinhos. É até heresia pensar em algo assim.
The Sandman: Ato I (Idem – EUA, 15 de julho de 2020)
Direção: Dirk Maggs
Roteiro: Neil Gaiman
Elenco: Neil Gaiman, James McAvoy, Kat Dennings, Taron Egerton, Michael Sheen, Riz Ahmed, Andy Serkis, Samantha Morton, Bebe Neuwirth, Justin Vivian Bond, William Hope, Arthur Darvill, Sue Johnston, Miriam Margolyes, Daniel Weyman
Duração: 654 min.