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Crítica | The Outsider

por Ritter Fan
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Hoje em dia é assim, mal um livro chega às livrarias e ele já é comprado para virar filme ou série. Com a concorrência acirrada de serviços de streaming, essa tendência – que sempre existiu – só foi se aprofundando, com mergulhos em catálogos profundos. E é óbvio que, quanto mais famoso o autor, mais intensa é a disputa por suas obras. Stephen King, que basicamente sempre teve seus livros muito cobiçados por Hollywood, gerando inúmeras adaptações, lançou The Outsider (publicado no Brasil simplesmente como Outsider, em inglês mesmo, mas sem o artigo) em maio de 2018 muito provavelmente com todos os direitos já vendidos no estilo “porteira fechada”. O resultado disso foi a produção e lançamento de uma minissérie homônima em curtíssimo espaço de tempo e como encomenda da normalmente muito exigente e cuidadosa HBO e comando de Richard Price, romancista e roteirista americano com trabalhos em séries do mais alto pedigree como The Wire, The Night Of e, muito recentemente, The Deuce.

A minissérie em 10 episódios não é agradável de se assistir. O tema principal que a perpassa – como lidamos com a dor da perda -, algo catalisado pelo brutal assassinato de um menino cujo corpo é encontrado na floresta que rodeia Cherokee City, na Georgia (o romance, que não li, se passa em Flint City, Oklahoma, um dos raros de King fora do Maine) ganha uma inclemente roupagem lúgubre e pesada que afasta qualquer esperança de um mistério que pode ser encarado de maneira descompromissada. A atmosfera cinza salpicadas de um tom verde doentio já desde seu início deixa o espectador inquieto, com a fotografia emulando o magnífico trabalho do gênio Roger Deakins em Os Suspeitos, de 2013, com o mesmo resultado: criar uma espécie de beco sem saída visual, daqueles que percebemos logo de cara existir e que já automaticamente torna a narrativa mais exigente de envolvimento efetivo.

Essa característica da série é amplificada pela qualidade de seu elenco. Ben Mendelsohn vive o detetive Ralph Anderson que, depois de recolher provas inequívocas, prende Terry Maitland (Jason Bateman) sob suspeita de assassinato, o que desencadeia uma série de eventos que fazem a minissérie transitar de uma obra procedimental para o sobrenatural, ou seja, aquilo que marca grande parte das obras de Stephen King. Mas muito mais importante do que a natureza mista da narrativa é a forma como Mendelsohn vive seu torturado personagem, um homem que não só precisa encarar aquilo que acabou de fazer, como também lidar com a morte de seu filho, vítima de câncer, algum tempo antes. A dor que Anderson sente é palpável em cada olhar, em cada palavra que ele solta e, mais ainda, a dor que ele acaba infligindo por agir como acaba agindo espalha-se como uma epidemia que toma de assalto todos os envolvidos. A força do trabalho do ator, que interage muito com a também excelente Mare Winningham, que vive Jeannie, esposa de Ralph, é impressionante, provavelmente seu melhor trabalho dramático até agora.

Orbitando em seu redor, há uma constelação de outros atores e atrizes muito eficientes em seus respectivos papeis, mas nenhum deles comparável à presença de Cynthia Erivo como Holly Gibney, personagem típico de King originalmente introduzido chamada Trilogia Bill Hodges e que é usado, aqui, como o elemento humano de transição da série de uma obra policial para uma obra sobrenatural. Usando suas capacidades especiais, é Gibney que começa a entender os padrões nas provas contra Terry Maitland e também nas que diretamente o exoneram e que criam o grande conflito do começo da história. É também ela que passa a acreditar que há algo mais nos acontecimentos do que “apenas” um assassinato, aos poucos exigindo de Anderson e dos demais personagens – e de nós, por tabela – a crença de que há algo inexplicável ocorrendo. Erivo constrói sua personagem com maestria, de certa forma transformando-a em uma analista imparcial do que pode ou não estar acontecendo ali e ao poucos convencendo-nos de que essa estranha personagem tem sim lugar em uma obra que, em um primeiro momento, tem uma cara completamente diferente.

Diria, porém, que, apesar de a “virada” da série não ser brusca, ou seja, não há uma troca de gênero tirada da cartola de Richard Price, ela também não é a mais suave do mundo. A partir da entrada lenta de Gibney no terceiro episódio, a personagem vai alterando nossa percepção do que é a minissérie, assim como quase quem exatamente é o protagonista, já que Anderson fica, de certa forma, no “banco de reservas” por um bom tempo, permitindo que a Gibney de Erivo brilhe. E esse brilho vem com algumas conveniências narrativas, como, por exemplo, na conexão quase que literalmente canina que Andy Katcavage (Derek Cecil) estabelece com ela. Um segurança particular que já fora policial e que se enamora por Gibney em um caso complexo parece uma construção forçada demais que, se espremermos, não agrega muito ao desenvolvimento da narrativa que não seja como um veículo para destacar a personagem ainda mais, como se a mera presença de Erivo não fosse suficiente (e é).

Por outro lado, há um cuidadoso trabalho em trabalhar o sobrenatural como algo que, em retrospecto, faz completo sentido. E não digo isso em relação aos momentos “assustadores” comuns, com presenças estranhas em momentos tensos. Falo mais da forma como King – e também Price – retira inspiração diretamente de Drácula, de Bram Stoker, para esculpir uma excelente versão moderna e torturada do servo Renfield, famosamente comandado pelo Conde. Isso funciona não só como uma quebra de expectativa em relação à função de determinado personagem, como também uma maneira inteligente de se trabalhar esse lado mais fantasioso da história sem descambar completamente para o sobrenatural. É como se a série tentasse – e conseguisse – fincar-se como um meio termo entre a 1ª temporada de True Detective e Outcast, só para usar dois exemplos de obras com atmosferas da mesma natureza, resultando em algo singular e realmente muito interessante.

Como acontece com muitas obras de Stephen King, pode ser que haja gente torcendo o nariz para o final, aqui considerado desde o momento em que ação é deslocada de Cherokee City para uma cidade vizinha até o efetivo encerramento, com um talvez longo demais dénouement. Não sei, porém, como uma série com essa natureza híbrida poderia acabar sem gerar esse possível resultado no espectador que esperava algo mais, digamos, hollywoodiano. Afinal, seguindo a maneira inteligente como os gêneros são misturados, seria um erro dar a preponderância de um sobre o outro e o equilíbrio alcançado foi eficiente, ainda que não particularmente genial ou inesquecível. Mas a grande verdade é que o desfecho, aqui, não importa muito (desgosto profundamente da cena de meio de créditos, mas isso é um detalhe…), pois é a proverbial jornada até lá que realmente faz da série o que ela é. A lugubridade da fotografia, a desesperança das atuações – especialmente de Mendelsohn – e as incertezas sobre o mundo ao nosso redor, além de toda a pegada triste e pessimista que é indissociável do todo formam o grande espetáculo em seu conjunto e tornam a conclusão apenas uma forma de se encerrar uma história de maneira consideravelmente lógica, mas sem fogos de artifício e sem reviravoltas de último segundo.

Stephen King tem sido agraciado, em tempos recentes, com excelentes adaptações de suas obras e The Outsider é, sem dúvida alguma, mais uma delas. Uma minissérie (que espero que fique mesmo só como minissérie) muito bem produzida, com roteiros e personagens bem construídos e com o elenco principal de se tirar o chapéu. Não é uma obra feita para ser facilmente digerível ou para acariciar ou pegar na mão do espectador. A dor da perda ganha uma excelente representação sobrenatural na telinha e a HBO pode gabar-se de acertar no alvo mais uma vez.

The Outsider (EUA, de 12 de janeiro a 08 de março de 2020)
Desenvolvimento: Richard Price (baseado em romance de Stephen King)
Direção: Jason Bateman, Andrew Bernstein, Igor Martinovic, Karyn Kusama, Daina Reid, J.D. Dillard, Charlotte Brändström
Roteiro: Richard Price, Jessie Nickson-Lopez, Dennis Lehane
Elenco: Ben Mendelsohn, Bill Camp, Jeremy Bobb, Julianne Nicholson, Mare Winningham, Paddy Considine, Yul Vazquez, Jason Bateman, Marc Menchaca, Cynthia Erivo, Max Beesley, Derek Cecil, Summer Fontana, Scarlett Blum, Frank Deal, Dayna Beilenson, Hettienne Park, Michael Esper
Duração: 590 min. (10 episódios)

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