A ficção costuma ser um eficientíssimo veículo para fazer com que a realidade alcance um público muito maior que a própria realidade jornalística é capaz de tocar. Nessa toada é que The Morning Show, série criada por Jay Carson com base em jornalismo investigativo de Brian Stelter, vem, surpreendentemente, preencher um espaço que merecia mesmo atenção sobretudo do público masculino: o movimento #metoo.
Mas antes que os roladores de olhos de plantão façam o usual e desdenhem da questão como “mimimi”, algo que “não acontece” ou que “vitimiza o homem” (tadinho do homem…) ou até mesmo que “sempre foi assim e não tem nada de errado com isso” (minha vez de rolar os olhos…), deem uma chance a The Morning Show, uma série que parece começar usando o #metoo apenas como catapulta narrativa para uma discussão sobre a estrutura corporativa de conglomerados de jornalismo e entretenimento, o que por si só é um assunto interessantíssimo, mas que consegue lidar com as duas questões de maneira equilibrada, adulta e excitante, por vezes beirando a estrutura de série de ação. Mas é importante perseverar, pois, como parece ser marca de todas as séries de lançamento do Apple TV+, o início de TMS é errático, patinando entre assuntos e demorando a firmar-se de verdade, algo que aconteceu, para mim, apenas a partir do quarto episódio.
O título da série é também o do programa jornalístico ficcional matutino mais assistido nos EUA e apresentado por Alex Levy (Jennifer Anniston) e Mitch Kessler (Steve Carell) há uma década. No entanto, uma denúncia de assédio contra Mitch leva à sua demissão imediata pela UBA, produtora do programa, desencadeando frenéticas reformulações do TMS, a começar por uma Alex fragilizada tendo que tomar as rédeas para enfatizar que ainda é relevante, passando pela revoltada repórter de rua Bradley Jackson (Reese Witherspoon) sendo tragada para esse furacão por Cory Ellison (Billy Crudup), executivo da divisão de entretenimento da UBA que acabou de assumir a de telejornalismo e chegando ao ansioso e inseguro Charlie “Chip” Black (Mark Duplass), produtor executivo do programa. Gravitando ao redor deles, há uma verdadeira constelação de personagens que são afetados ou afetam a situação cada vez mais calamitosa e sem saída que os roteiros da série vão costurando magistralmente.
Como disse, porém, há algumas escorregadas narrativas no início que colocam muito foco em Alex e sua jogada de mestre para consolidar seu poder na ausência de Mitch, assim como o relativo escanteamento do #metoo com a reinserção (tecnicamente inserção, já que ele começa a temporada “de fora”) do próprio Mitch. Mas, ultrapassada a trinca inicial de episódios, que são fundamentais para a temporada, não se enganem, mas que arriscam ao não destravar o potencial pleno da série, a história ganha complexidade e relevância, além de desenvolver maravilhosamente bem diversos personagens para além de Alex e Bradley, valendo especial destaque para o brilhante “jogador de xadrez corporativo” Cory e o extremamente nervoso Chip, com Crudup e Duplass realmente marcando presença com suas atuações bem diferentes, mas ambas de se tirar o chapéu.
Claro que muito da força dramática da série vem de Reese Witherspoon e Jennifer Anniston, a primeira uma atriz que particularmente não gosto, mas que não posso deixar de elogiar pela estirada de trabalhos excelentes nos últimos anos, e a segunda uma atriz que nunca vi galgar o primeiro escalão, mas que, aqui, ela ameaça chegar lá. Alex e Bradley têm personalidades opostas – uma acomodada, outra combativa – que se complementam antiteticamente desde que as primeiras farpas voam entre elas, ambas com presenças em tela que competem pelo olhar do espectador.
Mas o verdadeiro valor da série é saber trabalhar os bastidores de um telejornal com a seriedade de The Newsroom casada com a urgência de unReal resultando em um mix próprio que abre todo o espaço possível para o tema do #metoo a ponto de, mesmo quando a temporada é didática, ela o é no momento certo e dentro de um contexto preciso. Esse é o caso, por exemplo, do oitavo episódio, o único trabalhado como flashback e o único a nos permitir um vislumbre do TMS com Mitch ainda lá dividindo – na verdade absorvendo – os holofotes com Alex.
Trata-se de um momento poderoso que mais diretamente nos deixa (e por “nos”, leia-se especificamente nós, homens) entrever a mecânica insidiosa e quase imperceptível do jogo de poder e do sexo e o estrago que ele pode causar a alguém. Há coragem no texto em manter a narrativa bem no fio da navalha para que o espectador tire suas próprias e, espero, inevitáveis conclusões sobre o assunto, ainda que a temporada não arrisque em deixar dúvidas sobre o que quer dizer. É um tapa na cara muito bem dado e um alerta.
The Morning Show ficcionaliza uma realidade dolorosa, convertendo-a em televisão do mais alto gabarito que não deixa pedra sobre pedra ao ponto de ser até difícil visualizar como a série continuará na próxima temporada (e, só para ficar claro, isso é um elogio!). Não é fácil trabalhar um assunto do momento sem cair na armadilha do maniqueísmo ou do didatismo extremo, mas Jay Carson, mesmo derrapando no começo, recupera sem demora o equilíbrio e presenteia a Apple TV+ com sua melhor série inaugural.
The Morning Show – 1ª Temporada (EUA – 1º de novembro a 20 de dezembro de 2019)
Criação: Jay Carson (baseado em obra de Brian Stelter)
Direção: Mimi Leder, David Frankel, Lynn Shelton, Tucker Gates, Roxann Dawson, Michelle MacLaren, Kevin Bray
Roteiro: Kerry Ehrin, Jay Carson, Erica Lipez, Adam Milch, Torrey Speer, Kristen Layden, Jeff Augustin, JC Lee, Ali Vingiano
Elenco: Jennifer Aniston, Reese Witherspoon, Billy Crudup, Mark Duplass, Gugu Mbatha-Raw, Néstor Carbonell, Karen Pittman, Bel Powley, Desean Terry, Jack Davenport, Steve Carell, Tom Irwin
Duração: 550 min. aprox. (10 episódios no total)