Do Que as Séries Americanas São Sintoma? Quando a segunda temporada da série The Good Doctor foi lançada em 2018, encontrava-me na maratona do ano anterior e no desfecho do livro de François Jost que também é parte do preâmbulo desta análise, algo semelhante ao que foi realizado na crítica dos primeiros passos do Dr. Shaun Murphy (Freddie Higmore) e seus parceiros de trabalho no San Jose St. Bonaventure Hospital. Sem o término da leitura, a pergunta-título não tinha sido respondida em sua totalidade. Jost afirma que a criação de um personagem realista ainda é um dos motivos de sucesso das séries estadunidenses, mesmo diante de um formato que apresenta exaustão. Criá-los, em sua concepção, é alicerçar a sua potencialidade dramática nas esferas privadas, sociais e profissionais. Ele inclusive aponta dois saberes: o “fazer” e o “ser”, isto é, o foco na prática profissional e a abordagem de seus comportamentos enquanto seres humanos em interação, respectivamente.
Para o autor, construir um personagem realista não significa necessariamente confundir a “criatura” ficcional com alguém idêntico de nosso mundo, mas uma versão da realidade, mesclada com elementos narrativos próprios do drama que se alimenta da vida real e vice-versa. É assim que The Good Doctor dá partida em sua segunda temporada, apresentada ao público por meio de 18 episódios, ainda chancelados pelo criador David Shore e sua equipe de dramaturgos. Juntamente com Lloyd Gilyard e David Renard, roteiristas com maior número de episódios assinados, a série conta com a direção de David Straiton, Michael P. Jann, Mike Listo, Seth Gordon, dentre outros.
Nos 18 “momentos” de seu segundo ano, The Good Doctor mantém o padrão adotado pelo formato do ano anterior, sem grandes inovações. Há os desafios particulares de cada personagem, bem como casos medicinais complexos e que pedem profissionais habilidosos para a sua resolução durante os tensos atendimentos. As ações, como sempre, ocorrem em sua maior parte dentro do centro hospitalar, algo que não impede as cenas externas que registram viagens, pausas para lanche e compras, jantares e relações sexuais, acontecimentos que não funcionam apenas como preenchimento de tempo na narrativa, mas costuram as ações e definem os perfis psicológicos e sociais dos personagens.
No mesmo nível de desempenho dramático da primeira temporada, o Dr. Shaun Murphy (Freddie Higmore) segue com Lea Delallo (Paige Spara) e o Dr. Aaron Glassman (Richard Schiff) como os elos principais na condução de sua vida pessoal e profissional. Com Lea ele avança no relacionamento. Tornam-se amigos. Moram juntos. Ela precisa lidar com o jeito dele e ele precisa aprender a conviver com alguém que não faz parte da mesma condição mental/emocional. É um feixe de aprendizados para ambos os personagens. No caso do Dr. Glassman, há alguns conflitos na relação entre mentor e aprendiz, o que faz a narrativa conduzir a dupla para um afastamento temporário, algo necessário para o processo de cicatrização de algumas escolhas que não foram fáceis para os personagens. Se observado pelo viés aristotélico descrito no livro de François Jost, citado anteriormente, o Dr. Murphy pode se encaixar entre o mimético alto e mimético baixo, isto é, personagem que no padrão “alto” é um herói que se parece conosco, mas possui habilidades raras; e no “padrão baixo”, é um herói igual ao ser-humano comum. O residente não chega a ser um projeto de Superman ou Batman, mas brilha diante da cena como alguém além do essencial e básico do homem comum.
Aliás, ele e os demais médicos do hospital possuem tais características, cada um à sua maneira. Nos meandros destas tipologias estratégias, há ainda o herói mítico, de natureza superior aos seres humanos; o romanesco, personagens que estão um grau acima dos homens e de seus ambientes; e o irônico, categoria posterior aos miméticos altos e baixos, inferiores aos nossos olhos, personagens que definitivamente não estão dentro de nenhuma série médica estadunidense/canadense/brasileira procedural contemporânea, programas que empregam aos seus protagonistas o jaleco como espécie de armadura/capa de herói. Trajados desta vez, pelos figurinos elaborados por Jenni Gullet e sua equipe, os personagens que circulam pelo hospital possuem novos desafios, algo absolutamente normal para seres humanos ativos e praticantes no mercado de trabalho.
Dra. Claire Browne (Antonia Thomas) é um elo forte na condução profissional e grande conselheira de Dr. Murphy. Amadurecida profissionalmente, precisa lidar com os problemas oriundos da misoginia e opressão dos médicos experientes arrogantes, pessoas que acreditam na ideia de transformação do cotidiano dos aprendizes num inferno em chamas, algo que possivelmente os tornará profissionais mais preparados para o futuro. Questionável em termos pedagógicos e humanos, mas nada diferente do padrão estabelecido pela televisão no que diz respeito aos profissionais iniciantes. Quem também cresce na temporada é a Dra. Morgan Reznick (Fiona Gublham), residente que arriscou o maniqueísmo no ano anterior, mas que nesta temporada teve as suas esferas dramáticas trabalhadas com mais afinco.
Ela ainda continua na disputa, no entanto, teve a oportunidade de demonstrar que vai além do estereótipo da “agressiva colega de trabalho disposta a passar por cima de qualquer um por um cargo e posição privilegiada”. O Dr. Alex Park (Vai L. Lee) também ganha perfil bem delineado nessa temporada. Além da sua esposa e filho, seara problemática em busca de reconstrução, ele possui a chance de ampliar o seu potencial enquanto médico residente na tomada de decisões profissionais importantes. Na ala dos estabelecidos, a Dra. Audrey Lim (Christina Chang) divide-se entre a disputa pelo cargo de chefe e o relacionamento amoroso com o também competitivo Dr. Neil Melendez (Nicholas Gonzalez), recém-divorciado e com lacunas sentimentais em sua existência de tensões profissionais.
Ambos estão constantemente sob o olhar de Dr. Marcus Andrew (Hill Harper), ocupante de um cargo hierarquicamente mais alto depois do câncer em tratamento do mentor de Dr. Murphy. Arrogante, a sua dimensão social é o foco constante da temporada, sem maiores problematizações psicológicas oriundas da tentativa de ser pai sem sucesso no ano anterior, algo que colocou o seu casamento em breve crise. Alegra Aoki (Tamlyn Tomita) ganha menor destaque, aparecendo apenas em cenas exclusivamente burocráticas, isto é, quando há um processo judicial, problema administrativo ou situação de Relações Públicas muito importante na dinâmica hospitalar.
No que tange aos pontos de conexão realista, podemos destacar os dilemas de uma jovem que teve a região genital mutilada por familiares na ausência dos pais enquanto recém-nascida, o caso comum do contágio de alguém que viajou para uma região considerada “exótica” e trouxe um vírus/bactéria que se alastra pela cidade, e, concomitantemente, pelo hospital, além dos ocasionais imigrantes, acidentados no trânsito e afins. Há também um debate interessante sobre o luto e a necessidade de desprendimento, haja vista a doação de órgãos um caminho para que os familiares em dor profunda permitam a libertação de outras pessoas do sofrimento de constantes atendimentos hospitalares. A discussão interessante e que já foi bem trabalhada em outras séries é a complexa sensação de infelicidade e tristeza que às vezes faz a pessoa ser tomada por uma onda de egoísmo explicável. Se ela não pode ser feliz com a vida perdida do ente querido, por qual motivo deve ver o sorriso no rosto de outras pessoas?
Na seara da construção audiovisual das narrativas, a segunda temporada de The Good Doctor continua com um grupo de profissionais competentes para conectar o público e os fios narrativos dos 18 episódios de 45 minutos. A direção de fotografia assinada pelo trio formado por Eric Steelberg, John S. Bartley e Christopher Faloona mantém o padrão para enquadrar, iluminar e acompanhar os personagens que trafegam pelos ambientes criados por Michael Joy e Charles M. Logola, dupla que assina design de produção ainda predominantemente azul e do branco, tons que contempla a visualidade dos espaços no hospital. As cenas conduzidas musicalmente por Dan Homer e seu eficiente trabalho sonoro contemplam o hospital e os mesmos tons clássicos amadeirados e pérola dos ambientes externos, tal como a primeira temporada. Como apontado no texto anterior, os efeitos visuais supervisionados por Melissa De Long continuam importantes para a compreensão da “visão” especial do protagonista em relação aos casos que atende cotidianamente.
Quando encerrada a análise da temporada, podemos perceber que a ideia geral da série está numa das falas do ator Freddie Highmore durante entrevistas para divulgação da temporada em questão. Segundo seu ponto de vista, “o ambiente da Medicina empurra as pessoas até os seus limites e ajuda a entender o que é humanidade”. No caso de seu personagem, os caminhos dialogam com a necessidade de se comunicar melhor. É uma regra imposta não apenas pelas pessoas ao seu redor, mas pelos gestores do hospital. Só assim ele poderá evoluir. O mesmo fica como dica para os episódios, cativantes graças aos personagens carismáticos e atualidade dos temas narrados, algo que no entanto, pode encontrar problemas na terceira temporada, pois há necessidade de avanço e diferenciação do que já é feito constantemente em outras séries médicas, afinal, o programa deve buscar sair da linha de cancelamento e o telespectador precisa ter a chance de ver algo diferente da mesmice que se tornou o formato procedural médico, “viciante, mas automático” quando se repete demais e torna a audiência um grupo de pessoas robotizadas diante da mesma história, contada repetidamente por roteiristas, atores e canais televisivos diferentes.
The Good Doctor – 2ª Temporada (Idem, Estados Unidos/Canadá – 2018)
Criação: David Shore, Daniel Dae Kim
Direção: Mike Listo, Michael Patrick Jann, David Straiton, Steven DePaul, Seth Gordon
Roteiro: Lloyd Gilyard Jr., Jae-Beom Park, David Renaud, Karen Struck, Mark Rozeman, Johanna Lee
Elenco: Freddie Highmore, Nicholas Gonzalez, Antonia Thomas, Chuku Modu, Beau Garrett, Irene Keng, Hill Harper, Richard Schiff, Tamlyn Tomita, Will Yun Lee, Fiona Gubelmann, Christina Chang, Paige Spara
Duração: 45 min. por episódio (18 episódios no total)