- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série.
Não fosse pelas invencionices da direção de Michael Goi, coMplications seria um mais do que sólido episódio de The Gifted, certamente tão bom quanto o anterior, talvez até melhor. Mas não quero deixar essa questão atrapalhar a análise da narrativa do capítulo, pelo que comentarei sobre a direção irritante mais para o final.
Afinal, vê-se muito claramente que Matt Nix está conduzindo a série que desenvolveu de maneira muito competente, com foco em seus personagens e não na pirotecnia ou no exagero de referências para fãs babões. Ele é cuidadoso ao criar situações que organicamente reduzem o escopo e alcance da ação que vemos desenrolar ao longo dos episódios, algo essencial para uma série que não tem orçamento infinito para esbanjar e que, ao mesmo tempo, não quer ser a bobajada que a maioria das séries que compõem o chamado Arrowverse é. Mas de forma alguma seu trabalho é brilhante, daqueles capazes de marcar a história das séries de TV baseada em quadrinhos de super-heróis – como Legion, por exemplo – e, tenho para mim, que ele sabe muito bem disso.
Sua escolha em trabalhar relacionamentos é arriscada, pois pode alienar muito gente que quer ver demonstrações atrás de demonstrações de poderes, com embates entre mutantes o tempo todo, mas é, também, a mais acertada, extraindo o melhor de seu elenco. Assim como no episódio anterior, o roteiro de Michael Horowitz (um dos melhores escritores da série até agora) distribui os conflitos em vários núcleos, todos muito bem desenvolvidos e sem enrolação.
Vejam o caso da família Strucker, para começar. O poder mutante latente que Reed vinha escondendo há seis meses, o equivalente ao salto temporal entre uma temporada e outra, não é mais segredo aqui. Lauren testemunha uma perigosa e descontrolada demonstração que leva os dois a um acidente de carro e a quase serem pegos por um obsessivo e dolorosamente patético Jace Turner. Fiquei com receio que o segredo ficasse só entre pai e filha, mas o final reconciliador com Caitlin é o tipo de acontecimento que só enriquece uma série dessas, demonstrando que Nix quer caminhar para frente e não de lado. Será interessante ver como essa história se desenvolve e como Reed será integrado ao núcleo efetivamente mutante da temporada, valendo um adendo para o bom CGI usado nos poucos segundos em que vemos seus poderes funcionando.
Como falei de Turner, vale abordá-lo brevemente, até para explicar o porquê de eu tê-lo adjetivado de patético. De líder respeitado de uma divisão do Sentinel Services, ele tornou-se uma sombra do que era, um homem assombrado por seu passado e escravo de uma obsessão. Seu ódio pelo mutantes o faz passar terríveis momentos na delegacia de polícia que procura com sua teoria de que os membros que perseguira do Mutant Underground ainda estão vivos. Nós sabemos, claro, que ele está mais do que certo e chega a ser triste vê-lo literalmente desinflar perante o delegado, que o coloca em seu lugar diante do restante da equipe. Jace é um ser humano destruído, humilhado e é nesse sentido que eu o adjetivei de patético. Coby Bell vem se saindo muito bem nessa desconstrução de seu personagem e seu inevitável reerguimento tem potencial de ser um processo doloroso e particularmente mortal para os mutantes tanto do grupo liderado por John quanto para o grupo de Reeva.
John e Blink, aliás, servem como pivôs para a introdução dos Morlocks na série, com Erg (Michael Luwoye), líder do grupo de mutantes que, por suas características físicas, não passam por humanos e que, por isso, vivem nos esgotos, finalmente sendo introduzido. Seus poderes ainda não foram revelados (nos quadrinhos, ele absorve energia cinética e os canaliza por meio de seu olho), mas isso pouco importa na verdade, pois o que realmente vale é a abertura de outra linha narrativa que amplia ainda mais o horizonte da série e dos próprios mutantes fugitivos, já que eles aprendem sobre a dura realidade de seus pares naquela aparentemente feliz (dentro do possível, claro) comunidade subterrânea. É torcer para que os Morlocks efetivamente sejam costurados na base criativa da série e não sejam apenas mais um grupo para ser defenestrado ao final da temporada.
No lado mais diretamente dramático do capítulo, Dawn, o bebê de Polaris, sofre de um caso grave e aparentemente incurável de icterícia, o que altera até mesmo sua coloração de uma hora para outra. No desespero para não perder a criança, Reeva concorda em trazer Marcos para ajudar com seus poderes de lanter… digo, manipulação do espectro luminoso, o que obviamente gera tensão entre ele e Polaris. Seu “sequestro” pelas irmãs telepatas e seu conflito com o amor de sua vida são rápidos e eficientes, com um belo momento de pai e filho em que ele cura a bebezinha e, claro, direito a um prólogo que expande ainda mais seu passado e introduz uma figura paterna em sua vida, algo que rima bem com um dos temas do episódio.
Quando ele está indo embora sob controle mental das irmãs Stepford, ele consegue resistir ao controle pelo que aparentemente é a “força do amor” e diz que Lorna estaria de alguma forma sendo controlada, manipulada, o que o leva a um arroubo inexplicável de violência que poderia ameaçar a integridade física de sua filha. Esse momento tem dois problemas. O primeiro deles é algo que o primeiro episódio já havia demonstrado, mas que ficou muito claro agora: a manifestação dos poderes de Reeva simplesmente não funciona bem. Ela abre a boca, enrijece os braços e solta um estranhíssimo berro que enfraquece e potencialmente mata mutantes. Ok, trata-se de poder retirado dos quadrinhos, mas o problema é que a forma como Matt Nix escolheu para torná-los viáveis no meio audiovisual não me desce, parecendo demais o que um fan film amador conteria.
Mas o segundo problema é potencialmente pior. Se o que Eclipse diz é mesmo verdade e as irmãs Stepford estão “na cabeça” de Lorna (e possivelmente de Andy), com todas as implicações que isso traz, então a série pode desmoronar sob seu próprio peso. Afinal, todo o conceito do final da 1ª temporada foi uma divisão consensual do Mutant Underground e não algo forçado e seria uma perversão dessa ideia se poderes telepáticos estivessem envolvidos. Por outro lado, se não for isso, o que exatamente Marcos quis dizer? Veremos como isso será trabalhado, mas confesso que fiquei receoso.
Finalmente, cabe falar da direção de Michael Goi. Lembram-se do exagero estiloso de Keneth Branagh em Thor? Para tentar imprimir estranheza de maneira visual, Branagh usou e abusou de posicionamentos radicais de câmera e do chamado ângulo holandês, que “entorta” a cena, de maneira a causar um leve e discreto incômodo no espectador. Michael Goi faz o mesmo. O problema é que, nos dois casos, apesar do uso das técnicas fazerem sentido – em Thor era o “estranho em terra estranha” com Odinson na Terra e, em coMplications, é o mesmo, só que com os Morlocks – o problema está no exagero. Afinal, elas só funcionam mesmo com discrição, sem chamar atenção para si mesmas e somente nos momentos realmente necessários. Mas não. Goi entortou várias cenas não relacionadas com os Morlocks e brincou de colocar sua câmera em todos os lugares sem qualquer função dramática específica, o que é o equivalente cinematográfico de alguém que entra em um restaurante silencioso com um boombox nas alturas. Com isso, uma narrativa muito boa é arrastada para baixo por uma direção inábil que faz publicidade de si mesma.
Mesmo com seus problemas, porém, coMplications passa seu recado e faz a história caminhar com vontade para a frente, com mais trabalho dedicado ao desenvolvimento efetivo de seus vários personagens do que com fogos de artifício. O conflito entre Mutant Underground e Inner Circle se avizinha e a bem-vinda introdução dos Morlocks pode engrossar esse caldo.
The Gifted – 2X03: coMplications (EUA, 09 de outubro de 2018)
Criação e Showrunner: Matt Nix
Direção: Michael Goi
Roteiro: Michael Horowitz
Elenco: Stephen Moyer, Amy Acker, Sean Teale, Natalie Alyn Lind, Percy Hynes White, Coby Bell, Jamie Chung, Blair Redford, Emma Dumont, Skyler Samuels, Grace Byers, Hayley Lovitt, Jeff Daniel Phillips, Erinn Ruth, Michael Luwoye
Duração: 43 min.