- Somente foram citados personagens que apareceram nos trailers e material promocional oficial do filme.
É uma pena que The Flash, primeiro longa-metragem live-action (em tese) solo do querido Velocista Escarlate da DC Comics chegue às telonas em um momento de transição do Universo Cinematográfico DC – se é que isso existiu algo assim um dia – em que, pelas mais diversas razões que não pretendo abordar aqui, o que veio antes está em processo de desmoronamento e o futuro na visão de James Gunn, apesar de alinhavado, ainda sequer começou. Digo que é uma pena porque a obra de Andy Muschietti (que despontou com os dois capítulos de It: A Coisa) seria um potencialmente excelente ponto final de todo um universo, o equivalente ao que Crise nas Infinitas Terras foi para os quadrinhos da editora (óbvio que eu não estava falando daquele arremedo da CW, não é?), mas, sem que o que veio antes tivesse solidez suficiente e sem uma direção futura realmente clara, o filme acaba não passando de um Sem Volta para Casa, ou seja, uma coleção de referências nostálgicas fragilmente costuradas para fazer fã babar, algo que definitivamente não é algo difícil de se conseguir.
Pelo menos o roteiro escrito por Christina Hodson e Joby Harold (a primeira com Aves de Rapina e Bumblebee e o segundo com Army of the Dead: Invasão em Las Vegas e Transformers: O Despertar das Feras em seus respectivos currículos), diferente do que aconteceu com a reunião dos Aranhas, não parece apenas uma desculpa narrativa derivada de uma ideia solitária, mas sim algo levemente mais orgânico e mais estruturado que se parece minimamente mais com um filme legítimo, por assim dizer, mesmo que haja uma luta morro acima para manter a coesão. O texto, na verdade, faz o que pode com o material que tem e com os mandos e desmandos dessa produção que sofreu de tudo em todas as suas etapas, usando como trampolim o célebre – mas não tão bom assim se quisermos realmente ser justos – arco dos quadrinhos conhecido como Ponto de Ignição (Flashpoint, no original), publicado em 2011, em que o Flash, essencialmente, ao voltar ao passado para tentar impedir que sua mãe seja assassinada e seu pai seja injustamente condenado pela morte dela, quebra o multiverso.
No entanto, a HQ é apenas a inspiração para uma história bem diferente nas telonas em que o Flash (Ezra Miller) que foi originalmente apresentado em Liga da Justiça, de 2017, e, depois, reapresentado na incansavelmente endeusada versão do diretor do mesmo filme, de 2021, ao tentar salvar Nora Allen (Maribel Verdú, de E Sua Mãe Também), acaba tendo que tentar salvar o universo do agora aposentado Batman de Tim Burton, vivido novamente por Michael Keaton, da invasão kryptoniana capitaneada por uma versão do General Zod de O Homem de Aço (Michael Shannon também repetindo seu papel) que está atrás do Superman que, nesse mundo, não existe. No entanto, antes de chegar ao Homem Morcego oitentista, Barry Allen encontra-se com uma versão mais nova dele mesmo, com 18 anos (também Miller), ainda sem poderes, mas não menos histriônico e os dois, juntos, precisam lidar com o frenesi que se instala.
É, sem dúvida alguma, uma premissa muito interessante e até genuinamente engajadora, mas, como eu disse, esse filme teria o potencial de ser um belo ponto final a um universo bem estabelecido, jamais uma primeira obra solo de um personagem que fez essencialmente uma ponta em apenas um longa antes, ainda que em duas versões (três se contarmos com Justiça é Cinza). Mesmo que haja mais cuidado narrativo em The Flash do que em Sem Volta para Casa, o final da trilogia do Aranha do Universo Cinematográfico Marvel tem mais peso dramático por tratar de personagens mais estabelecidos no cânone multiversal cinematográfico. Sim, reconheço que o Batman de Michael Keaton tem esse peso também e o ator realmente rouba todas as cenas em que aparece – o que não é difícil -, mas ele é um único aspecto realmente positivo dentre vários, incluindo aí o protagonista, que carecem de uma relevância efetiva dentro desse multiverso.
No entanto, para além dessa questão, o longa é tonalmente muito estranho, com uma sequência inicial de ação frenética em Gotham City que serve para deixar muito claro que o Flash desse filme é o Flash de Liga da Justiça, com direito ao Alfred de Jeremy Irons e ao Batman de Ben Affleck (ainda que usando uma versão absolutamente horrorosa de seu uniforme que só é melhor do que a armadura com bat-mamilos de Batman & Robin). Nesse começo, o tom é abertamente cômico, com Ezra Miller refestelando-se em sua limitação dramática de bobo da corte, com a própria pancadaria ganhando um verniz que era para ser hilário, mas que acaba gerando apenas sorrisos amarelados pelo exagero da coisa toda (por diversas vezes senti ecos de Thor: Amor e Trovão só para vocês perceberem o nível). Depois, no outro universo, a pegada é oposta, mais sombria e mais pesada, só que também mais corrida e sem que Muschietti, em momento algum, realmente tenha coragem de apostar suas fichas nisso, o que deixa espaços para inconveniências de humor deslocado que detraem do todo e esvaziam o drama, até porque o próprio desenvolvimento dos dois Barry Allens, especialmente o mais jovem, é relegado ao segundo plano e, então, quase que instantaneamente, é acelerado de 0 a 100 sem dar tempo ao tempo.
No departamento de computação gráfica, até eu, que não ligo para trabalhos perfeitos e irretocáveis nessa seara (eu elogiei o CGI de Adão Negro, vale lembrar), fiquei incomodado. Se o CGI já havia esgarçado toda a minha boa vontade na sequência inicial de ação em Gotham City, quando o Flash entra pela primeira vez na tal cronosfera (uma espécie de eixo central do multiverso), fiquei sinceramente na dúvida se a intenção era fazer algo que parecesse que veio diretamente de uma cutscene de um jogo do primeiro Playstation ou se o orçamento tinha acabado, porque aquilo lá é, como diria Alex DeLarge, de Laranja Mecânica, um verdadeiro horrorshow. Como os problemas continuaram mesmo fora das cenas da cronosfera, infelizmente não posso concluir outra coisa que não que The Flash sofreu tanto em sua longa história de produção, que tudo acabou atropelado e ruim de verdade nesse quesito.
O restante do longa, especialmente seus minutos finais novamente na cronosfera, é um caça-referências e fan service que irritantemente se tornou o padrão dos blockbusters do gênero. Pela janela vai a história que é, então, sumariamente substituída pelo absoluto e inescapável vazio que são os momentos que existem somente para o espectador apontar para a tela e identificar esse ou aquele personagem e objeto mais rapidamente do que seu coleguinha ao lado. A experiência cinematográfica, com isso, torna-se uma pouco inspirada brincadeira de criança que não exige nada de ninguém a não ser um francamente inútil conhecimento enciclopédico de cultura pop.
The Flash era para ser um sensacional, ainda que megalômano encerramento de uma grande fase, mas o filme desmorona por não ter bases sólidas para se desenvolver e pelos claros problemas causados pelas sucessivas mudanças de direção dentro da Warner/DC. Admito que o filme talvez acabe sendo uma experiência divertida para muita gente, mas a diversão, aqui, é daquelas bem rasteiras (e diversão não precisa ser rasteira, ao contrário do que muitos acham) que, pelo menos para mim, quase desaparece por completo se tirarmos Michael Keaton da equação. O Velocista Escarlate, depois desse tempo todo esperando por um filme só dele, sem dúvida alguma merecia bem mais do que para lá de duas horas de uma macarronada de referências com o Batman de 1989 roubando todo o protagonismo e a atenção. Quem sabe um dia?
Obs: Há apenas uma cena pós-créditos bem lá no final mesmo que, sinceramente, nada acrescenta à história ou ao que está por vir.
The Flash (Idem – EUA, 2023)
Direção: Andy Muschietti
Roteiro: Christina Hodson, Joby Harold
Elenco: Ezra Miller, Ben Affleck, Jeremy Irons, Michael Keaton, Sasha Calle, Michael Shannon, Ron Livingston, Maribel Verdú, Kiersey Clemons, Antje Traue
Duração: 144 min.