Em uma adaptação livre do quadrinho Ponto de Ignição (Flashpoint, no original), o filme solo do Flash nos apresenta Barry Allen (Ezra Miller) usando sua recém-descoberta habilidade de viajar no tempo para desfazer o evento mais traumático de sua vida: o assassinato de sua mãe e a injusta prisão de seu pai, que ocorreram enquanto ele ainda era uma criança. No caminho desta missão, o Velocista Escarlate altera drasticamente o multiverso e as linhas do tempo, em mais uma história que aborda esse conceito que já está ficando desgastado no gênero, tendo sido usado pelo MCU em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, Sem Volta para Casa e Loki, assim como na recente franquia animada de Miles Morales.
Confesso que não estava com altas expectativas sobre esse filme, considerando que o marketing de The Flash mostra todas as piores características atuais do gênero super-heróico, com artifícios baratos de fan service projetados para exibir a biblioteca de propriedade intelectual do estúdio. Toda a propaganda do filme fazia a história soar como vários recortes de referências de uma produção sem rumo, com o agravante do Universo Cinematográfico DC estar passando por uma transição com a nova direção de James Gunn. Os acidentes extra-fílmicos de Miller também não ajudaram a imagem do filme.
Mas, surpreendentemente, a obra acaba sendo mais contida e focada no Flash do que antecipei, ainda que o longa-metragem seja extremamente problemático e, por muitas vezes, pareça inacabado, tanto no CGI quanto em termos narrativos. O que acabamos vendo é uma história de origem que parece o evento de uma cinessérie sem qualquer tipo de construção prévia, afinal, se tem algo que aprendemos com a DC nos últimos anos é a total falta de planejamento do estúdio.
O bloco de abertura do filme é um passeio de constrangimentos visuais, começando pela terrível atuação de Ezra Miller. Desde que assisti Vin Diesel e John Cena tentando passar o drama de dois irmãos brigados com traumas infantis, essa foi a primeira vez que sai do cinema pensando que qualquer joão-ninguém sem talento pode protagonizar um blockbuster em Hollywood. O que esse rapaz faz nesse filme é inacreditável, extremamente exagerado, em um típico overacting enquanto tenta trazer humor como um nerd socialmente desajeitado que é cheio de histrionismos, numa mistura que não faz muito sentido.
O ator nunca consegue acertar o tom do personagem e saímos do cinema sem uma boa impressão de quem é o Barry para além de uma ênfase em sua ansiedade, falta de jeito e tiques faciais. Alguns podem até achar o exagero interessante, seja por entender que o filme é intencionalmente cartunesco ou cafona, mas tudo na atuação de Miller me soou excessivamente ridícula. É nesse tipo de situação que começamos a apreciar o carisma de caras como Chris Pratt, Chris Hemsworth e até Zachary Levi, que mesmo em suas limitações dramáticas, criaram uma identidade para seus personagens e trouxeram um pouco de suas próprias personalidades divertidas aos heróis.
Verdade seja dita, o roteiro não ajuda o intérprete, com piadas e diálogos ruins nos bombardeando a todo instante, como a cena do chocolate na cabeça do herói ou o exagero sem graça com a sequência dos bebês, para dar dois exemplos no início da obra. O que segue a partir disso é uma série de referências e participações especiais forçadas para situar que este é o Barry da Liga da Justiça, incluindo o Alfred de Jeremy Irons, o Batman de Ben Affleck e a Mulher-Maravilha (Gal Gadot). Confesso que até aplaudo o esforço para trazer algum tipo de coesão para o DCEU, mas as participações são efetivamente inúteis, assim como as piadas ruins de que o Flash é o “faxineiro” e o bobão da Liga da Justiça, já que nada disso é abordado no resto da obra. He, as piadas funcionariam muito mais se o alvo fosse o Arqueiro Verde (das HQs e não o pseudo-batman da CW).
O bloco inicial finaliza com o salvamento do bebês em slow-motion para caracterizar o personagem em ação. Se alguém esperava um pouco da qualidade cômica e técnica das cenas do Mercúrio nos filmes dos X-Men, ficou extremamente decepcionado com o resultado dos efeitos especiais. Tudo é agonizantemente artificial, passando pelos humanos digitais que parecem feitos de borracha e chegando na estranha movimentação do velocista. Muschietti até que é um bom diretor, com enquadramentos inventivos e uma abordagem meio Looney Tunes para as cenas de luta, mas o VFX é horrível demais para fazer qualquer cena de ação funcionar visualmente.
Após a sequência inicial, aprendemos um pouco mais sobre Barry e sua família. O texto faz um bom trabalho em diluir a história de origem do personagem em meio à aventura de viagem no tempo, sem cair em muitos didatismos para explicar seu passado. Os roteiristas também entendem que, por mais que o conceito da obra tenha uma escala gigantesca, o melhor caminho é na contramão do “épico”, prezando pelo lado mais familiar e fundamentado da história de Barry, apesar do pouco tempo de tela que seu pai (Ron Livingston) e Iris West (Kiersey Clemons) recebem, em tese personagens que deveriam compor mais a vida pessoal do protagonista.
É uma pena, porém, que a narrativa nunca encontre um tom. O filme muitas vezes descamba para uma comédia inconsequente e logo depois quer trazer uma dimensão dramática que não se encaixa, principalmente por Miller não ter uma latitude dramática ou versatilidade o suficiente para equilibrar as mudanças de tons da obra. Alguns temas interessantes até acabam perdidos nesse meio, como o fato de Barry ser um personagem egoísta e irresponsável, ou até a mensagem geral de sacrífico que fica diluída em obviedades para os telespectadores em um desfecho bonitinho e previsível para sua relação com a mãe.
Rebobinando um pouco, temos a viagem no tempo de Barry até o fatídico dia, em que o herói muda os eventos ao não deixar sua mãe esquecer uma lata de tomates, motivo pelo qual seu pai não sai de casa e sua mãe não é assassinada. Isso gera uma reação em cadeia, com Barry voltando para uma linha do tempo alternativa onde conhece uma versão jovem sua que não perdeu os pais. A partir daí, temos um Ezra Miller interpretando dois personagens extremamente desagradáveis e histriônicos, principalmente a versão mais jovem. Existem algumas ideias interessantes sobre espelhamento e como nossas tragédias nos moldam, mas nada é realmente aprofundando nesse sentido, com os dois Barrys servindo mais a propósitos cômicos.
O filme finalmente ganha uma sobriedade e equilíbrio de humor com a entrada de Michael Keaton como Batman, basicamente roubando a atenção toda vez que contracena com Miller. Apesar de ser tratado como um atrativo para fãs pelo marketing da produção, o retorno do morcego de Keaton é provavelmente a melhor característica do longa, com a sutileza e melancolia do personagem em contraste com os excessos do filme. O passado do personagem também traz uma camada dramática interessante ao se vincular com o próprio trauma de Barry.
Também não sou exatamente fã da sucessão de eventos após Barry encontrar sua versão mais jovem. A narrativa entra numa série de “vamos encontrar tal personagem”, primeiro com o Batman de Keaton e depois com o Superman, quando eles acabam topando com a Supergirl (Sasha Calle), em uma aventura repetitiva e pouco criativa até chegarmos no ato final contra Zod (Michael Shannon). A história não inspira muita energia ou divertimento narrativo durante essas caçadas, com Supergirl integrando o grupo muito próximo da história acabar e sem termos desenvolvimento dos personagens enquanto uma equipe que nos importemos.
Aliás, acredito que o filme em si é pouco imaginativo. Entendo que o argumento dramático é simples em torno do sacrifício e responsabilidades do herói, mas o entorno da produção poderia ser mais memorável, principalmente esteticamente. Já citei negativamente os efeitos especiais, mas, por exemplo, a cronoesfera tem um design esquecível e a batalha contra Zod no desfecho do filme parece uma repetição do que vimos em O Homem de Aço. Até o clímax da produção com a colisão dos mundos é um retalho de referências, com direito a Christopher Reeve, Nicolas Cage e afins, apenas para fãs apontarem para as telonas. O pior de tudo é a falta de consequências para a catástrofe criada por Barry, com a aparição de George Clooney servindo como piada para fechar o filme e não para apontar os erros do protagonista.
No fim, The Flash não é muito diferente da bagunça que o marketing vendeu. Um longa-metragem pouco especial e pensado como propaganda de outras propriedades da DC e referências para fãs, trabalhando temas batidos da mitologia de super-heróis sem algo novo ou uma identidade própria que o distingue de tantos outros. Esteticamente, é uma super-produção que decepciona nos efeitos especiais e na falta de imaginação para um conceito tão insano e caleidoscópico como o multiverso – notem, por exemplo, que Doutor Estranho no Multiverso da Loucura e Homem-Aranha: Através do Aranhaverso arrasam no departamento visual da concepção. E como comédia, é uma obra de sorrisos rápidos de canto de boca, contando com um trabalho horrendo de Ezra Miller. Pelo menos o filme tem uma história minimamente coesa, com uma mensagem bonita e um desfecho sentimental para a origem do velocista escarlate.
The Flash (Idem – EUA, 2023)
Direção: Andy Muschietti
Roteiro: Christina Hodson, Joby Harold
Elenco: Ezra Miller, Ben Affleck, Jeremy Irons, Michael Keaton, Sasha Calle, Michael Shannon, Ron Livingston, Maribel Verdú, Kiersey Clemons, Antje Traue, Gal Gadot, Jason Momoa, George Clooney, Temuera Morrison, Christopher Reeve, Adam West, Nicolas Cage, Helen Slater
Duração: 144 min.