– Há spoilers. Leiam as críticas dos demais episódios de The Flash, aqui.
Em sequência direta a um centésimo episódio celebrando o passado da série, The Flash permanece em ares comemorativos com seu já tradicional crossover do ano, Elseworlds. Embora traga o mesmo nome do selo dos quadrinhos, a trama nesta parte inicial pouco tem a ver com ele, abordando não uma história paralela em uma Terra alternativa, mas uma aventura de mudança de realidade em nosso universo tradicional (ou seja, praticamente um dia normal para o Flash). Os pontos centrais da história gravitam em torno da troca de papéis entre os protagonistas de Arrow e The Flash: Barry Allen (Grant Gustin) agora é o Arqueiro Verde, enquanto Oliver Queen (Stephen Amell) é o Flash… Quer dizer, mais ou menos.
Na verdade, Barry Allen se tornou Oliver Queen e Oliver Queen se tornou Barry Allen — não é uma troca de corpos simples, mas nossos heróis são inseridos no papel um do outro, conservando suas aparências e memórias porém adquirindo as habilidades de sua contraparte. A forma desnecessariamente meandrosa com a qual a trama decide abordar o tradicional cenário da troca de corpos é representativa do roteiro como um todo. Lançando inúmeros elementos em uma tacada só, a produção não procura mapear atalhos possíveis e traz um conjunto ligeiramente mal costurado de boas ideias.
Uma dupla de problemas que sabotou tanto Invasion! quanto Crisis on Earth-X volta a dar as caras: a disparidade de tonalidade na construção da trama super-heroica e a dificuldade de se fazer um bom uso dos inúmeros personagens à disposição. Aparentemente tentando adereçar essas dificuldades, Elseworlds tenta abertamente adotar uma escala mais “íntima” e um ritmo mais lento do que seus predecessores, com a construção da trama fazendo lembrar mais os antigos “team-ups” dos personagens em suas respectivas séries do que o modelo novo das “megassagas” anuais.
Embora tenha seus momentos divertidos pontuais, o resultado não difere muito dos antecessores em termos da narrativa. Essa primeira parte da saga começa com o pé errado, encontra um equilíbrio desajeitado entre dois objetivos diferentes e acaba sem deixar qualquer gancho minimamente interessante para o capítulo seguinte. Curiosamente, a sensação que tive com o conjunto da obra foi muito reminiscente ao que se vê nos piores megaeventos da Marvel assinados pelo Brian Michael Bendis — com a exceção de que ele geralmente consegue ao menos engambelar com um cliffhanger de respeito, algo que não acontece aqui.
O começar com o pé errado a que me refiro se trata, obviamente, da apática sequência introdutória. Fazendo um uso preguiçoso de uma boa versão televisiva do Monitor (LaMonica Garrett), somos apresentados ao caricato projeto de vilão Dr. Daniel Faraday John Deegan (Jeremy Davies), que se encontra frustrado após uma tentativa mal-sucedida (aparentemente nem mesmo a primeira!) de inserir casualmente um elogio e convite à eugenia em sua disciplina de psiquiatria. Além de não servir propósito algum na narrativa (já que a revelação do Monitor já havia sido feita — de forma muito mais impactante — contracenando com o Flash alternativo de John Wesley Shipp), temos aqui entregue de bandeja para o espectador o provável motivo por trás da troca de corpos, o que, se não tira da coisa um pouco do valor de surpresa, não contribui em nada para construir qualquer suspense.
De forma semelhante, todo o lance da troca de corpos acaba sendo melhor explorado principalmente sob o ângulo humorístico. É a partir dele que a figura do ilustre (e muito querido por mim, na real) Bendis se fez presente para mim: se as DRs no meio de um cataclisma cósmico (elemento em comum dos dois) não são nenhuma novidade para esse universo, o tom leve dos diálogos e a caracterização dos personagens me fez lembrar bastante a conhecida inclinação do roteirista “ex-Marvel” em forçar o diálogo afiado na pegada do “custe o que custar”. Os personagens protagonizam trocas divertidas e a interação entre os elencos é bem aproveitada, trazendo doses saudáveis de fanservice e auto-referências pululantes. O problema é que essas trocas, apesar de funcionarem por si, não deixam de estranhar no nível da caracterização: Oliver é pintado como um cara intransigente ao ponto da turronice, Barry como um herói jovial e alto-astral e Iris protagoniza momentos clássicos do papel de par romântico do herói nos quadrinhos — excessivamente sentimental e sempre por fora do que está havendo.
Essas versões podem até ser consideradas fiéis em comparação com algumas fases dos personagens nos quadrinhos (e fica claro que o evento, seguindo o estilo da série, mira uma tonalidade próxima dos quadrinhos da Era de Prata) — mas elas são condizentes com o que vem sendo mostrado nas séries? Uma das coisas que melhor funcionou para mim foi a interação entre Barry e Oliver, que consegue ser o melhor encontro dessas versões dos personagens desde Flash vs. Arrow. As sequências em Smallville (apelação usar Save Me como música incidental — e olha que eu nem gosto muito de Smallville!) parecem se inspirar pesadamente naquele primeiro crossover entre os heróis.
Devo dizer que o Barry visto ali é o que eu gostaria de ver mais nos episódios regulares — brincalhão, otimista e jovial. O contraste com Oliver traz bons momentos para os personagens, e proporciona uma excelente tiração de sarro meta-textual a respeito das séries. Barry e o Team Flash fazem pouco caso do estilo soturno de Oliver, enquanto que este revida afirmando que Flash é um herói movido a discursos motivacionais. Provocações clássicas (alguém lembra se elas já foram feitas antes, nos outros crossovers?), que complementam bem o clima de descontração entre os personagens. Merece destaque a vingança bem construída de Barry a respeito da flechada nas costas — bravataria super-heróica bem utilizada, dosando bem o absurdo do lado mais caricato dos personagens.
O que sabota essa exploração de ir mais longe é justamente a caracterização um tanto torta, que parece confundir as caricaturas dos momentos de humor com o que os personagens realmente são. “Bem, mas o intuito do crossover é mais juntar um bando de heróis fantasiados e, entre um momento de fanservice e outro, mostrá-los dando porrada com efeitos de CG apenas aceitáveis!”. Concordo plenamente — o problema é que é o próprio roteiro insiste em explorar o lado dramático e, assim, joga uma lupa sobre essa caracterização falha. Tudo de bom que foi construído entre o Arqueiro e Flash acaba revertendo em um revirar de olhos nas sequências em que ambos “levam a sério” as bravatas e depois seguem em uma DR surreal a partir da qual concluem que devem agir mais como o outro, para poder ter sucesso no uso de suas habilidades trocadas (!?). Esse aspecto da trama é totalmente risível, e tenta dar contornos “CW-realísticos” ao que funciona apenas sob uma tonalidade mais leve e divertida. Sem saber se quer acertar numa galhofa otimista ou ficar no terreno tradicional do beicinho, a coisa toda acaba num meio-termo mal equilibrado, onde a trama acaba soando irremediavelmente forçada em vários pontos.
Ao menos na frente super-heróica, o crossover consegue entregar boas sequências de ação, os quais nos fazem desejar que ao menos um pouco do tempo gasto com a exploração repetitiva dos mesmos dramas forçados fosse feita nesse setor. Com um vilão à altura da Liga da Justiça, bem realizado através de uma computação gráfica competente, a parceria de nossos heróis traz seus momentos empolgantes de team-up, ainda que toda a subtrama referente à necessidade de Barry agir como Oliver e vice-versa adicione uma camada desnecessária que pouco adiciona à coisa toda. Sem tempo para desenvolver os motivos e origem da ameaça vilanesca do andróide A.M.A.Z.O. e aproveitar minimamente o cameo de Superman e Lois Lane, mas com tempo de sobra para explorar a premissa ridícula do “E se Barry de repente achar que virou o Oliver mesmo hein, e agora?”, o episódio acaba redundando em um primeiro capítulo morno, que coloca várias peças na mesa sem saber muito bem do que quer brincar.
Se mal citei Kara (Melissa Benoist) até aqui, é porque novamente a kryptoniana acaba jogada para escanteio e pouco adiciona à história que não seja fazer a mediação entre a dupla principal nos seus momentos mais infantis (ao sonífero estilo “Ah, esses garotos!”) — além, é claro, de apresentar aos nossos heróis o seu primo mais famoso, que visita a série com o único propósito de dar uma enterrada de respeito num robô gigante (a isso, não posso me opor). Ah, e também para nos apresentar a nova Lois Lane (Elizabeth Tulloch) — OK, por que não? Embora promissoras, essas peças encontram-se claramente sobressalentes na trama geral, e empolgam mais pela perspectiva em ver o encontro dos personagens do que por qualquer uso narrativo que valha a pena (ao menos com Barry e Oliver eles tentaram!). A dúvida que fica a respeito da parte seguinte é: será que a introdução de Gotham seguirá essa mesma sina? Por mais legal que seja ver elementos dos quadrinhos sendo traduzidos de forma “fiel” para a televisão, fazê-lo por fazê-lo, sem uma narrativa concreta em mente, vale tanto a pena assim? Vejamos na próxima parte de Elseworlds!
p.s.: Cadê a Nora, minha gente!?
The Flash – 5×09: Elseworlds, Part 1 — EUA, 9 de dezembro de 2018
Direção: Kevin Tancharoen
Roteiro: Eric Wallace, Sam Chalsen
Elenco: Grant Gustin, Candice Patton, Carlos Valdes, Tom Cavanagh, Hartley Sawyer, Stephen Amell, David Ramsey, Tyler Hoechlin, Melissa Benoist, John Wesley Shipp, Jeremy Garrett, LaMonica Garrett, Elizabeth Tulloch
Duração: 43 min.